
O meu irmão: um romance que é uma consolidada promessa
“O meu irmão”, por Afonso Reis Cabral, Prémio Leya 2014, Leya SA, 2015, é um belo romance e confirma o autor como alguém que promete ir longe. O resumo da contracapa enquadra bem o que vamos ler: “Com a morte dos pais, é preciso decidir com quem fica Miguel, o filho de 40 anos que nasceu com síndrome de Down. É então que o irmão – um professor universitário divorciado e misantropo – surpreende a família, chamando a si a grande responsabilidade. Numa casa de família, situada numa aldeia isolada do interior de Portugal, o leitor assistirá à rememoração da vida em comum destes dois irmãos, incluindo o estranho episódio que ameaçou de forma dramática o seu relacionamento. É um romance de grande maturidade literária que, tratando o tema sensível da deficiência, nunca cede ao sentimentalismo”.
Nunca saberemos o nome deste irmão, o narrador. Vão para o Tojal, e o Tojal é um dos maiores problemas dos portugueses, tão ou mais aflitivo que a dívida colossal que legaremos aos bisnetos, faz parte do país deserto, ninguém sabe nem ninguém prevê como todo esse interior um dia será repovoado. “O Tojal tem o tamanho de uma mão. É um daqueles lugares que Portugal deixou morrer, mas agora, com o descalabro, talvez as pessoas voltem à toca para lamber as feridas. O descontentamento sobe pelas paredes, rebenta com o botão, mas não sai do sítio. Implodimos mais do que explodimos. Quando isto acabar, quando a crise tiver outro nome, sobreviveremos cada um para o seu canto, cada um mais estropiado do que o outro. Depois, aos poucos, voltará tudo ao normal e certo dia, um belo dia em Lisboa, daqueles que Lisboa tem, como já ninguém se lembra do descalabro alguém arranjará como nos lixar outra vez”. Este Tojal parece ficar para os lados de Arouca mas faz parte do país abandonado. A prosa é íntima, tem vozes interiores, uma consciência fluída, e uma narrativa inquieta entre o presente e o passado. Há um romance dentro do romance, um Romeu e uma Julieta, Miguel e Luciana, há um morto-vivo, Quim, talvez a personificação da agonia desse interior, há uma relação extremamente difícil entre os dois irmãos, um dia o irmão do Miguel foi à APPACDM e informou que se impunha uma separação entre aqueles dos deficientes, a vida lá em casa tornara-se intolerável com as referências à Luciana. Esta aparece assim identificada: “Era enfezada em tudo menos no cabelo e tinha uns olhos muito definidos e azuis que, apesar dos óculos, fixavam com atenção, sempre à espera de agarrar em qualquer coisa”. Naquele colégio há figuras como o Caranguejo e o Masturbador, inesquecíveis. Afonso Reis Cabral observou e sentiu estas pessoas, seguramente, não é invenção o que nos diz sobre Miguel: “Os dedos devem ter as articulações elásticas, porque vergam para trás quase até ao punho na base do indicador, calos com a forma de dentes, pois desde os 10 anos que morde os dedos até adormecer”. Por vezes a narrativa é inundada pelo mundo interior do narrador, dilacerado por aquele mano tão imprevisível, tão obsessivo e por vezes tão terno. É uma relação em eterna construção, no fundo como todas as nossas, o narrador procura fazer-nos entender o sofrimento de Miguel: “Ele trata-me mal porque sofre” e discorre sobre os três tipos de sofrimento, o dos animais, a dor das crianças e o sofrimento dos deficientes, que se assemelha muito ao dos animais. E dá-nos uma síntese sobre o sofrimento do Miguel, preso na sua condição, sofrimento de criança porque é a alma que sofre. Mantém-se vivo ma aparência mas as saudades da Luciana já o mataram.
O Tojal acabará por ser um espaço de redenção, para trás ficará o entendimento do que foi viver em família com o Miguel, como a vida do narrador era tão melancólica a estudar verbetes, aquele irmão foi oxigénio e revivescência. Os dois irmãos estão entregues a si próprios, e como na vida todos nós, há sempre segredos inarráveis, Miguel não poderá saber como partiu Luciana da sua vida. Quando o autor escreve “Miguel, não sei o que dizer” e ele responde “Não digas nada” é porque chegou a hora do entendimento, vão regressar apaziguados.
Há que saudar esta pujante maturidade, sentir a palpitação de escritas que marcarão a renovação da nossa literatura como José Cardoso Pires ou António Lobo Antunes e pressentir que este jovem adulto tem compleição para vir a voar com as suas próprias asas. Ninguém ficará desapontado com esta toada lírica, este afeto fraternal. E também a literatura sobre os deficientes ganhou aqui um peso pesado.
Mário Beja Santos
Maio de 2015