
Depressa, chamem um médico!
A fiar-nos no título, temos aqui um rol de histórias à volta de situações críticas, por vezes dilacerantes, na saúde, protagonizadas fundamentalmente por doentes. Mas não, “Depressa, chamem um médico! Histórias insólitas em consultórios, ambulâncias e hospitais portugueses”, por Paula Ferreira e Sónia Trigueirão, A Esfera dos Livros, 2014, é uma minuciosa investigação que percorre notícias de jornais, gabinetes de tribunais e recolha de depoimentos abarcando o setor da saúde, no seu lado mais negro: negligências, insólitos, fraudes e burlas em que a vítima é o Sistema Nacional de Saúde.
As autoras dão-nos um contexto histórico, 2008 e o início da crise financeira, que começou a ter sério impacto na vida dos portugueses em 2011, apanhando a generalidade dos cidadãos desprevenidos, e conduzindo o SNS para uma indesmentível deterioração. Iniciava-se um tempo de cortes, reduções, encerramentos, aumento das taxas moderadoras, e o mais que se sabe. Este pano de fundo é explicativo para determinados capítulos da obra que abordam a falta de medicamentos, de material, de camas e médicos, bem como de esquemas e fraudes, mas é totalmente desajustado aos primeiros capítulos, se bem que as autoras tentem reposicionar muitas destas histórias insólitas em função da crise. É verdade que no início de 2014 havia cerca de 1 milhão de doentes sem médico de família, mas isto nada tem a ver com as histórias pícaras que se seguem e que se devem associar a falta de literacia em saúde, as histórias reportadas perdem-se na noite dos tempos, fica-se com a ideia de que as autoras foram tentadas pelo sensacionalismo de pôr histórias desligadas da crise, como se tudo tivesse começado na era de Paulo Macedo e da presença da Troica. O capítulo seguinte envereda pelo mesmo caminho, são histórias do passado, doentes a passar fome nas urgências, doente que rouba ambulância porque precisava de boleia, a traquibérnia de um ex-deputado do PSD que se fez engessar por um cunhado, médico, para evitar um exame pericial à sua assinatura… São histórias rocambolescas, mas sem nexo com a crise em que vivemos. É uma descida aos infernos em situações que se repetem mas de há muito: supositórios nos ouvidos, falsos médicos, médicos em estado de fúria, erros médicos, doentes que batem em médicos, etc.
O historial de negligências médicas também tem barbas, ninguém duvida destas trocas de seringas, doentes com compressas dentro do corpo, morrer à espera nas urgências, amputações por erro médico, cirurgia às varizes que acaba com uma amputação, trata-se de uma outra descida aos infernos que convém estar sempre presente até para a defesa dos direitos dos doentes e para exemplificar nas aulas de deontologia profissional, nomeadamente da classe médica e dos enfermeiros.
As grandes carências a que se referem as autoras constituem o verdadeiro rosto da crise, é a fatura da austeridade na saúde e na qualidade de vida: cirurgias adiadas, hospitais com dívidas e sem medicamentos, médicos e enfermeiros sem material para trabalharem, enfermeiros obrigados a pagarem medicamentos do seu bolso, medicamentos esgotados, viaturas do INEM paradas por falta de médicos, o distrito de Vila Real sem especialistas, nove dias com perna partida à espera de operação, transplantados sem acesso a medicação. Isto sim, isto são histórias da crise, a mesma que numa atmosfera de degradação e salve-se quem puder apurou esquemas de fraudes mas que tem posto a inspeção do Ministério da Saúde em atividade, são crimes que a opinião pública conhece: escandaleiras do marketing farmacêutico envolvendo a indústria e a classe médica, um laboratório que oferecia descontos nas pousadas de Portugal, um burlão das farmácias com um esquema de receitas falsas, farmácias e armazenistas a exportar remédios ilegalmente, médicas e enfermeiras a fazer depilações por conta da ADSE e muitas outras tramoias que delapidam o erário público. É o lado negro da saúde, que importa denunciar como moléstia e vergonha. A despeito destes episódios, uns dramáticos e outros caricatos, é também verdade que a generalidade dos profissionais da saúde têm conduta briosa e procuram, contra ventos e marés, manter qualidade e acessibilidade dos serviços, assegurando, por vezes em condições tão precárias, a saúde dos portugueses.
Mário Beja Santos
Março de 2015