Testamento vital: Um novo desafio para todas as associações da Plataforma
“A Morte”, de Maria Filomena Mónica (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2011, 3.15€) é um ensaio de grande lucidez e coragem, um longo olhar a reflectir-se sobre a esperança de vida e o emaranhado de problemas que a nossa morte passou a suscitar.
A conceituada socióloga tece versáteis e sugestivas considerações preambulares sobre a ideia da mortalidade e as suas projecções culturais e recorda a penosa degenerescência física da mãe e depois a ritualização do último adeus. Decide mergulhar no estudo da morte, compara a evolução dos dois últimos séculos e diz: “As diferenças não se ficam pelo prolongamento da vida. No século XIX, os doentes eram, quando o eram, tratados por médicos de clínica geral, enquanto hoje o são por equipas multidisciplinares, o que, além dos efeitos positivos, tem uma consequência negativa: a ligação entre doente e médico tende a dissolver-se. Outro aspecto importante diz respeito ao local da morte. Dantes tudo se passava em casa, com a família ao lado. Hoje, a morte ocorre em unidades de cuidados intensivos, onde o doente se vê sozinho ou, o que não é melhor, ao lado de gente que não conhece. Outrora asilo de miseráveis, o hospital tornou-se o local onde o doente recebe os tratamentos que o levarão à cura ou à morte”. Procede a um rigoroso inventário sobre a história da morte e confere-lhe mais sabor com impressionantes evocações literárias.
Reflecte sobre a consciência do médico por vezes entalado entre desligar as máquinas e a eutanásia mais ou menos velada. E assim chegamos àquilo que hoje constitui o direito de morrer com dignidade. Socorre-se de exemplos chocantes e de polémicas vibrantes. Mais cedo ou mais tarde, recorda a autora, o Estado vai ter de tomar uma posição e esclarece: “Não consigo prever o dia e a hora em que morrerei, mas, caso se verifique a necessidade de tomar uma decisão, quer ser eu a pronunciar-me, esperando que, caso me encontre em sofrimento, tenha a meu lado um médico preparado para me dar as drogas que me facilitaram a morte. Dizem-me que há quem o faça, sem que as autoridades hospitalares disso tenham conhecimento, mas não considero esta situação aceitável. Durante anos, foi possível viver na penumbra. Hoje, não o é”.
Melhor ou pior, estamos hoje confrontados com o envelhecimento prologando, o que antes era excepção tornou-se trivial. Depois a estrutura familiar alterou-se, há por vezes razões justificadas para os seniores serem metidos nos lares. A socióloga questiona o ideário religioso, mas também a doação de órgãos e enfrenta os temas do suicídio assistido e da eutanásia. Será ao poder político que competirá dar uma resposta: diante da morte, deverá prevalecer o princípio da autonomia individual ou a noção de que jamais é lícito dispor da vida humana? E entra nestes penosos assuntos da morte, discreteia sobre o suicídio assistido, os cuidados paliativos e o testamento vital. Mais uma vez, socorre-se de exemplos chocantes, daqueles de que não é possível ignorar a complexidade das diferentes combinatórias. Sobre a decisão do doente em querer suspender terapêuticas e desejar morrer, vivemos numa neblina por vezes confortável para quem tem que interpretar as normas ou convenções: “Em alguns hospitais, fazem-se coisas que, noutros, não são admitidas.
Em alguns, quando a reanimação de um doente terminal é considerada desproporcionada – por ter entrado em paragem cardiorrespiratória ou por ter uma infecção generalizada ou por ter um cancro metastizado – em missão de uma ordem no sentido de não reanimar o doente é tida como legítima, enquanto noutros tal não é admissível. Os médicos, sobretudo os jovens, deparam-se, nos serviços de urgência, com situações que não sabem se o que lhes é pedido corresponde à prática, ou não da eutanásia. As unidades hospitalares têm comissões de ética, mas delas há pouca notícia”. E refere os estudos mais recentes sobre eutanásia, suicídio assistido e doentes terminais. Lança achas para o debate, enunciando as formas possíveis de abordar a eutanásia e o suicídio assistido e a decisão do doente ou do seu familiar em suspender determinada terapêutica perante provas irrefutáveis de que se está a suspender inutilmente a morte. E lança polemicamente a questão da cidadania, reclama ser ouvida sobre o seu próprio fim: “É provável que morra nos próximos dez, quinze anos. Tenho filhos e netos, amei e fui amada, escrevi livros, ouvi música e viajei. Em princípio, poderia dar-me por satisfeita, o que infelizmente não me faz encarar a morte com placidez. Como Montaigne afirmou, com o tempo, o dilema Vida versus Morte vai-se transformando, num outro, Velhice versus Morte. Sei que as minhas células foram morrendo, as minhas articulações se tornaram rígidas e até o meu crânio diminuiu, mas nada disto conta quando se trata de pensar no fim. Se amanhã um médico me disser que sofro de uma doença incurável, terei um ataque de coração, o que, convenhamos, resolveria o problema. Mas, se isso não acontecer, quero ter a lei do meu lado”.
Estando hoje considerado o testamento vital como uma conquista da civilização, é justo, para não dizer necessário, ouvir a bioética e a justificação da existência de uma lei. É o que faremos no próximo texto.
Mário Beja Santos
Março de 2012