Testamento vital (2): Um novo desafio para todas as associações da Plataforma
Nos últimos anos, as questões inerentes à dignidade e autonomia da última vontade bem como o testamento vital passaram a ser discutidas à escala da ética e deontologia dos diferentes profissionais de saúde. Há que reconhecer que, de um modo geral, a opinião pública anda arredada desse debate. No entanto, a chamadas Directivas Antecipadas de Vontade já são tratadas pelas instâncias políticas ao mais alto nível. Em 2006, a Associação Portuguesa de
Bioética suscitou um debate sobre a importância e a legitimidade do testamento vital e em 2009 e 2010 foram apresentados projectos de Lei na Assembleia da República. Dois peritos em bioética resolveram escrever “Testamento Vital” (por Rui Nunes e Helena Pereira de Melo, Edições Almedina, 2011). A informação aduzida neste trabalho é do maior interesse, traz esclarecimentos pertinentes sobretudo para as associações de doentes, promotores e profissionais de saúde. Vejamos, em síntese, as propostas dos autores.
Fala-se hoje de testamento vital porque aumentou desmesuradamente a esperança de vida (num futuro próximo, as pessoas com mais de 70 anos de idade serão numericamente superiores aos jovens e adolescentes), a medicina está confrontada com novos desafios como são exemplos o procedimento que deve adoptar um médico quando há um pedido de suspensão de suporte avançado de medida (um ventilador, por exemplo), ou a administração de morfina com intuito de debelar a dor ou o sofrimento intenso, enfim a humanização na doença terminal (morte, morrer e cuidados paliativos) levam-nos a reflectir sobre a dignidade humana, a autonomia individual e saber em que condições o médico é ou não é obrigado a providenciar tratamentos inúteis. Escusado é dizer que esta vasta problemática não é consensual e levanta celeuma. Aliás já há princípios à volta de uma decisão intitulada “Ordem de Não Reanimar”, adoptados por vários hospitais. Esta ordem deve ser considerada nas situações de doença terminal, perda irreversível da consciência ou quando o doente tem doença grave e irreversível e em que a reanimação possa ser considerada desproporcionada.
Foi no contexto deste aumento de esperança de vida, do reconhecimento da existência de limites à intervenção médica que surgiu uma nova abordagem da doença terminal, os cuidados paliativos e o testamento vital. Os cuidados paliativos abarcam todos os doentes crónicos enquanto portadores de afecções irreversíveis sem qualquer perspectiva de recuperação completa. A partir dos anos 90, os cuidados paliativos foram reconhecidos pela Organização Mundial da Saúde como parte integrante da luta contra o cancro e hoje estendem-se ao tratamento de doentes terminais com SIDA, doenças cardiorrespiratórias, hepáticas, neurológicas entre outros, na acepção dos programas de cuidados paliativos existe a interdição absoluta de se pôr fim à vida dos doentes incuráveis e na fase final da vida.
Um outro debate se interpôs, o mais polémico deles todos que têm a ver com a doença terminal, a morte medicamente assistida, onde se preconiza que os cidadãos devem ser livres de recusar determinados tratamentos à luz do princípio do respeito pela autonomia individual. Como é sabido, a prática da eutanásia voluntária deriva moralmente da questão central do “direito” ao suicídio.
E chegamos assim às directivas antecipadas de vontade, matéria que se prende com os direitos dos doentes (como é o caso do consentimento informado, livre e esclarecido). Quando se fala em direitos dos doentes há que referir o imperativo à informação de saúde (directamente ou indirectamente ligada à saúde presente ou futura bem como o historial clínico do doente) destinada a ser utilizada em prestações de cuidados ou tratamentos de saúde, as questões de privacidade desses mesmos dados (dados clínicos, resultados de análises, não podem ser manipulados ou facultados a elementos estranhos à equipa de profissionais de saúde). As directivas antecipadas de vontade são entendidas como instruções que um pessoa dá antecipadamente, relativas aos tratamentos que deseja ou que recusa receber no fim da vida, para o caso de se tornar incapaz de exprimir a sua vontade ou de tomar decisões por e para si própria. Em muitos países as directivas antecipadas de vontade podem revestir a forma de testamento vital ou de nomeação de um procurador de cuidados de saúde (recorde-se que o testamento vital também pode ser designado por testamento em vida, testamento biológico ou testamento do paciente.
Os autores avançam com uma proposta de testamento vital com o objectivo de que uma pessoa devidamente esclarecida possa recusar determinado tipo de tratamento que no seu quadro de valores é claramente inaceitável face à degradação evidente da sua qualidade de vida. Para que se legalize o testamento vital é indispensável a existência de um formulário, que haja a todo o instante a possibilidade de revogar as decisões anteriormente tomadas, que exista um registo nacional de directivas antecipadas de vontade e haja um procurador de cuidados de saúde. No documento que será autenticado pelo notário uma pessoa declara que: “Se nalguma fase da minha vida o meu médico assistente determinar que eu tenho uma doença incurável ou terminal e que a utilização de meios de diagnóstico e tratamento apenas servem prolongar o processo de morte, determino que esses procedimentos extraordinários e desproporcionados sejam suspensos ou, de preferência, que não sejam iniciados, e que seja permitida a evolução natural da minha doença sendo apenas providenciados os cuidados paliativos necessários para o meu conforto ou para o alívio das dores e sofrimento”.
Para os autores deste livro não se pode entender o testamento vital fora do quadro da humanização da morte.
“Testamento Vital” é um livro de leitura obrigatória para conhecer os limites da vontade expressa do doente, o princípio do respeito pela autonomia individual, pilar da ética contemporânea.
No próximo artigo abordaremos as últimas questões delicadas que se prendem com a doença terminal, os cuidados paliativos.
Mário Beja Santos
Março de 2012
Releia aqui a primeira parte deste artigo de opinião.