
1 – O que pode fazer a protecção do consumidor pela saúde dos cidadãos?
É curioso verificar como o acervo de direitos do consumidor pode permitir, desde que bem exercitados, uma vida com mais qualidade, uma vida com mais saúde, uma cidadania mais activa. Com efeito, os direitos do consumidor procuram proporcionar a todos os indivíduos: mais qualidade (melhor aptidão e adequação dos bens e serviços aos fins previstos), mais segurança (maior satisfação com menor risco em todas as situações no uso dos bens de consumo, aqui se incluindo a capacidade dos bens e serviços permitirem uma situação de bem-estar de ordem física); uma maior protecção dos interesses económicos (consumidor esclarecido tem sempre menos litígios e uma maior potenciação dos seus recursos, obtendo mais satisfação nos serviços financeiros e em todas as outras relações de consumo que envolvam os seus actos no mercado.
Podíamos ir mais longe e questionar se o cidadão consumidor que cuida dos estilos de vida saudáveis, procura orientar as suas decisões de compra a pensar no desenvolvimento sustentável, gere o seu dinheiro balizado pelos seus próprios limites ou possibilidades, ou tem um regime alimentar fundado em vários princípios da segurança, por exemplo, não é aquele que vive com mais cuidado por si e pelos outros, com melhor vida de relação e com mais intensas preocupações solidárias. Sim, quem inclui no seu projecto de vida a sua dimensão de consumidor criterioso seguramente que terá mais aptidão para promover a saúde.
É com base nestes princípios que vou proceder a uma despretensiosa reflexão onde a saúde é acima de tudo encarada nas suas dimensões comportamentais, educacionais e comunicacionais. Para procurar alcançar este desiderato, vou considerar o significado do que é viver numa sociedade de risco, avaliar o papel da segurança em geral e da segurança alimentar em particular e analisar o que preocupa os consumidores na sua intervenção directa e quais as expectativas que têm na regulação do mercado.
Porque a qualidade, a saúde, a segurança, os interesses económicos, o sentido da responsabilidade do consumidor no desenvolvimento sustentável, a sua informação e formação estão permanentemente sujeitos à dinâmica do desenvolvimento sociocultural e económica, o mercado é o espelho onde os consumidores se revêem a qualquer momento. Noutra oportunidade irei abordar o triângulo “ambiente, saúde e interesses dos consumidores”.
2 – A segurança na mitologia contemporânea: Da segurança não alimentar à segurança alimentar
Primeiro, vivemos numa sociedade de risco. Nela, o medo, mais do que a segurança, mobiliza as massas. Esta uma das razões para o sucesso mediático da catástrofe ou do atentado. O acidente mais bizarro é pasto para o sensacionalismo mediático e qualquer acontecimento que envolva mais sangue e menos lágrimas é abertura de noticiário e manchete. Estabeleceu-se um idílio com a morte acidental, numa altura em que a esperança de vida aumenta sem cessar e em que o horizonte do planeamento económico da sociedade de consumo já não está circunscrito à vida activa do cidadão (é-se consumidor para toda a vida).
O medo da morte natural deixou de ser manipulado como forma de controlo social e tem sido substituído pela ilusão de uma vida praticamente eterna (o medo da morte é ultrapassado, no quotidiano, pelos cuidados com o corpo e a juvenilização). Com esta atitude, emergiram as panóplias à volta da mitologia da segurança, as indústrias do acidente e a exploração dos pânicos (terrorismo e bioterrorismo, medo do envenenamento alimentar, da catástrofe ecológica induzida, dos atentados à saúde e aos estilos de vida saudáveis).
Sim, a actualidade é sinónimo de acidentalidade em permanência. Como corolário desta situação, o homem actual é, ao mesmo tempo, emissor e devorador de medos. E quando falamos do consumo de medos, a sua amplitude é gigantesca: pode dar pelo nome de técnicas de autodefesa, multinacionais de segurança, protecção civil, múltiplos seguros, aperfeiçoamento de instrumentos como o cinto de segurança, segurança domiciliária; mas também segurança nas estradas, nos aeroportos, nos transportes fluviais, nos bancos, vídeosegurança, ninguém pode prever a expansão da maquinaria da segurança.
Risco e segurança andam de mãos dadas. É por isso que se procura regulamentar o risco nos bens de consumo (desde material de puericultura, passando por medicamentos e alimentos, até ao automóvel), procura-se prevenir o desastre natural, as fontes poluidoras, individualiza-se o risco, socializa-se o risco, protegem-se os dados pessoais, vigia-se o cibercrime, e mesmo assim há sempre a probabilidade de o controlo do risco nos escapar, isto por varias razões: negligência médica, erupção súbita de reacções adversas num medicamento, incapacidade de lidar, com a oportunidade, com crises alimentares, o desemprego e o endividamento excessivo… Enfim, da água poluída às novas doenças, dos temores ligados a epidemias, o grande teatro do risco, a ameaça, o desastre e a pandemia implicam-nos numa cultura de prevenção que tem que ser posta ao serviço das sociedades democráticas e não da manipulação dos espíritos mediante a mercantilização que explora os medos e a credibilidade.
Esta sociedade de risco reforçou o conceito de mercado de segurança.
É insustentável viver-se em alerta permanente, cumprindo infindáveis ritos de segurança. A segurança do carro é moldada electronicamente mas nunca há “risco zero” como nunca há “zero defeitos”. Do risco ao perigo não é admissível estabelecer uma agenda de previsões.
Afirmam os especialistas que vivemos num mundo mais seguro mas mais arriscado. Na sociedade de risco, o aparelho estatístico permite identificar as regiões onde mais se pratica o suicídio ou conhecer os principais acidentes por motivos de segurança e higiene no local de trabalho. A aceleração tecnológica, a escolha múltipla e a complexidade comportamental tornaram cada vez mais difícil o sucesso na adopção de políticas públicas contra o risco, seja na segurança rodoviária, no saneamento urbano ou na prevenção dos riscos naturais.
Por isso, mais vale prevenir do que remediar. A sociedade de consumo cedo teve que aprender a gerir os riscos decorrentes de técnicas aceleradoras de todas as velocidades e dos novos ritmos de vida (circulação acelerada, multiplicação dos sinais orientadores e identificadores, sincronização das actividades laborais e económicas, cadência das máquinas…). Para tal, teve que instituir dispositivos como: mecanismos de prevenção de sinistros mediante as ferramentas de normalização e certificação; auditorias; tratamento de resíduos; definição da responsabilidade civil; fiscalização acentuada da circulação nas estradas e auto-estradas; de igual modo as próprias empresas passaram a adquirir modelos de segurança integrada.
Segundo, a segurança não alimentar e os serviços abarcam um território vastíssimo: segurança das instalações eléctricas, das piscinas e parques aquáticos, dos parques de diversões e recreios escolares, das salas de espectáculos, em actividades de jardinagem e de reparação doméstica, ciclismo, compras efectuadas pela Internet, acidentes sazonais que ocorrem mais frequentemente no Inverno, etc., etc. Na generalidade dos casos existe legislação específica, hoje já funcionam comissões de segurança em muitos Estados-membros que contribuem para a resolução dos vazios legais, de acordo com a graduação e a gravidade dos acidentes. A Comissão Europeia dispõe de um sistema denominado Rapex que é um alerta rápido que funciona em toda a Europa e que permite recolher rapidamente produtos perigosos ou danificados que lesem a saúde pública e a segurança do consumidor.
O direito do consumidor à saúde e segurança está consagrado na Constituição (art.º 60º) e na Lei de Bases de Defesa do Consumidor. Há um vasto conjunto de instrumentos jurídicos que procura assegurar tal direito. É o caso de: a Comissão para a Segurança de Serviços e Bem de Consumo (que tem a finalidade de garantir o direito dos consumidores à segurança de bens e serviços, especialmente daqueles que, na falta da regulamentação específica, possam implicar perigo para a segurança física e saúde dos consumidores), pois temos o Sistema Português de Qualidade, a responsabilidade civil do produtor por danos causados por produtos defeituosos, a legislação de segurança sobre brinquedos, referente a cosméticos, o equipamento eléctrico de baixa tensão, os medicamentos, as preparações perigosas, os pesticidas, etc.
A segurança de um produto é avaliada em função das suas características (composição, embalagem, condições de funcionamento, montagem e manutenção), o efeito que o produto pode ter sobre outros produtos ou a apresentação para um bom uso (caso das instruções referentes à sua boa utilização), por exemplo.
A Administração, independentemente do quadro legal, investiga a segurança, estabelece garantias de qualidade, procede a ensaios comparativos, pode inclusivamente fiscalizar a publicidade que possam incitar situações incompatíveis com a inocuidade dos produtos.
Ao nível dos conflitos de consumo e da respectiva resolução extrajudicial, a questão da segurança não se encontra na primeira lista das reclamações. No entanto, problemas com automóveis, escolas de condução, habitação ou cortes de energia que levam à deterioração de alimentos, são relativamente frequentes e, felizmente, o seu tratamento tem conhecido bons níveis de resolução a contento do consumidor.
Terceiro, passando agora para a segurança alimentar, convém esclarecer que ela não é um território autónomo. O conceito de segurança, como vimos anteriormente, compreende múltiplos domínios: o sanitário, o nuclear, o rodoviário, a segurança pública, a protecção dos dados pessoais, a protecção civil, a segurança infantil… há quem trate como sinónimos segurança e qualidade, o que não é verdade. O objectivo da segurança é implementar um sistema de protecção que permita fazer face aos perigos que ameaçam as pessoas ou bens.
A segurança sanitária é muitas vezes entendida como a protecção contra os riscos que põem em causa a integridade física ou a saúde das pessoas. Também aqui temos uma confusão entre segurança sanitária e segurança das pessoas. A segurança sanitária pode ser entendida como uma segurança das pessoas contra os riscos associados a escolhas terapêuticas, aos actos de prevenção, de diagnóstico e de cuidados, ao uso de bens e produtos de saúde, assim como intervenções e decisões das autoridades sanitárias. Em consequência, a segurança sanitária inclui no seu âmbito não apenas as actividades de prevenção e cuidados, mas também os bens e produtos que visam a terapêutica, o diagnóstico e a prevenção, e até alimentos e vectores de saúde como o ar ou a água. Por isso, a segurança alimentar deve ser encarada como um subconjunto da segurança sanitária. O objectivo da segurança alimentar é proteger a saúde das pessoas contra as ameaças associadas aos alimentos. A qualidade é outra coisa. Ela pode ser definida como a aptidão para satisfazer as necessidades do utilizador. A procura do utilizador ou do consumidor contribui para definir o que representa um bom ou um satisfatório nível de qualidade. Para os produtos de consumo corrente (com excepção dos medicamentos), a noção de qualidade integra a de segurança, desde que o produto seja usado em condições normais e previsíveis. Para o medicamento, a qualidade é um elemento intrínseco de segurança. Há diferentes tipos de enquadramento da qualidade: regulamentação, determinação de exigências essenciais ou normas.
No domínio alimentar, a política de qualidade começou por ter um objectivo económico: a procura de produtos de excelência (sobretudo na dimensão organoléptica) por um certo número de consumidores. Esta procura autoriza custos de produção superiores à média que podem ser repercutidos nos preços. As produções de qualidade (caso dos produtos tradicionais) podem trazer soluções para regiões economicamente desfavorecidas. Observe-se, porém, que a noção de qualidade nos produtos alimentares apresenta muitas vezes aspectos que podem ser contraditórios: a qualidade sanitária, nutricional, organoléptica e de serviço para o consumidor. A segurança hoje num alimento não diverge da de qualquer outro produto. Por isso se recorre à rastreabilidade, que é a possibilidade de acompanhar, em todas as fases da cadeia, o caminho que o alimento percorre desde a sua origem até à utilização final.
3 – Os interesses dos consumidores face à saúde
Não deixa de ser útil reflectir sobre a articulação existente a nível da Direcção-Geral da Saúde e Protecção do Consumidor, da Comissão Europeia entre a saúde pública, a segurança alimentar e a política dos consumidores. Acima de tudo, prevalece a ideia de que a saúde e a protecção do consumidor são dois direitos fundamentais que seguem irmanados. Da experiência que temos na Direcção-Geral do Consumidor, e do património de 25 anos de política dos consumidores em Portugal, gostava de relembrar intervenções, iniciativas e trabalho conjunto, que permitem reforçar o sentimento que ainda há muita coisa a fazer para aproximar o nosso país a saúde pública, a segurança alimentar e a política dos consumidores.
Começo por referir o direito à informação, sem o qual o mercado fica opaco, o consumidor à deriva, o mercado entregue à lei do mais forte. Informar não é uma questão só de preços afixados ou da rotulagem. É esta a informação que permite um melhor uso do medicamento ou do cosmético, ou saber tirar partido das potencialidades dos alimentos através da sua proporção. A segurança do consumidor e as suas expectativas de saúde decorrem desta informação: os cuidados a ter no uso dos insecticidas, as práticas de higiene alimentar, a segurança com o uso do material de puericultura, a vigilância do mercado quanto à remoção dos produtos perigosos, sejam aqueles que tenham legislação específica, sejam os outros.
Passando para o direito à educação, trata-se do processo que garante o aperfeiçoamento da cidadania através do consumo. Assistimos nos últimos anos a uma grande transferência de conceitos e que tem a ver com as preocupações com o desenvolvimento sustentável. O chamado consumo social e ambientalmente sustentável decorre dessa linha. Os nossos materiais sobre educação do consumidor referem explicitamente que o consumidor educado é aquele que tem preocupações com os direitos do homem, a sua saúde, os seus limites e o respeito pelo planeta. O cidadão não pode ficar reduzido no mercado a saber escolher tecnicamente bem, tem que ser responsável pela prática dos seus actos de consumo. É o que se passa com a publicidade, é o que se passa com a educação alimentar, com o bom uso do comércio electrónico.
Para finalizar, importa referir que a dimensão dos estilos de vida saudáveis pressupõe que a informação e a formação do consumidor se fundamentam em linhas orientadoras balizadas pelos diferentes departamentos de saúde, competindo ao INFARMED dar o suporte técnico em domínios fulcrais como os medicamentos e os cosméticos, a Direcção-Geral de Saúde validar as grandes mensagens em torno da alimentação e da promoção da saúde, havendo que equacionar o trabalho conjunto com o Ministério da Educação, assegurando a boa divulgação das mensagens.
Mário Beja Santos
Março de 2012