Saúde é uma responsabilidade partilhada
Só o compromisso de todos garante o efectivo direito à saúde, confirmou-se na conferência anual da Plataforma Saúde em Diálogo.
A saúde como uma responsabilidade partilhada e um compromisso de todos, tema desta conferência, «traduz a mensagem da Lei de Bases da Saúde, de 2019», lembrou a presidente da Plataforma Saúde em Diálogo, Rosário Zincke, na abertura dos trabalhos deste evento, que decorreu a 27 de Outubro, com a participação de cerca de centena e meia de pessoas, que assistiram presencialmente no auditório da Associação Nacional das Farmácias (ANF) e em streaming.
Também presente, Carlos Miguel, Secretário de Estado Adjunto e do Desenvolvimento Regional, lembrou os «pequenos nadas» que poderão alterar o paradigma dos cuidados da saúde. Defendeu a importância de manter os serviços de saúde fisicamente próximos das pessoas, contrariando a tendência de encerramento nos locais mais remotos. Sugeriu o apoio das Juntas de Freguesia, que podem disponibilizar um “balcão do cidadão” que permita aos fregueses aceder a diferentes serviços, nomeadamente na área da saúde. O Secretário de Estado alertou ainda para a necessidade dos fundos europeus destinados aos cuidados primários de saúde serem aplicados de forma «abrangente e transversal, chegando onde é mais necessário e não onde é mais fácil».
Os desafios que a pandemia trouxe à bioética foi o tema da primeira conferência, a cargo do professor e médico patologista Jorge Soares, membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. O confronto entre os direitos individuais e colectivos fez-se sentir na decisão política que impôs o isolamento social e o confinamento obrigatório, mas também na questão dos rastreios, com destaque para a polémica da aplicação StayAway covid. Foram critérios éticos que determinaram as decisões de «racionamento» dos recursos e equipamentos disponíveis, como os ventiladores e as vagas nas Unidades de Cuidados Intensivos. A vacinação colocou dilemas como o direito individual à escolha versus saúde pública, mas também o da solidariedade entre países para assegurar uma cobertura vacinal aceitável nos mais pobres. Colaboração, solidariedade, cidadania, responsabilidade social foram questões que a pandemia veio agitar. «Devemos recorrer à ciência para nos ajudar a solucionar problemas inesperados e à ética para os enquadrar em valores que sirvam os cidadãos e a sociedade», defendeu Jorge Soares.
Compromissos locais para a saúde
Quando as iniciativas são boas há que replicá-las, incentivou Paulo Gonçalves, Presidente do Conselho Fiscal da Plataforma Saúde em Diálogo, que moderou a mesa-redonda sobre boas práticas locais para promover a saúde e combater a doença. Um exemplo é o Espaço Saúde 360º Algarve, um projecto da Plataforma que desenvolve um trabalho de proximidade com a população com mais de 65 anos, baixa escolaridade e baixos rendimentos, em quatro concelhos: Faro, Loulé, Tavira e São Brás de Alportel. «O gatilho é a literacia em saúde, para impactar a qualidade de vida e bem-estar das pessoas», afirmou o psicólogo da Plataforma Ricardo Valente Santos. Estão 220 pessoas integradas, a meta é chegar a 500, até 2022 e para isso contam com os vários parceiros do projecto tais como as autarquias, as Instituições Públicas de Solidariedade Social (IPSS), os agrupamentos de centros de saúde e as farmácias.
Também dirigido à população idosa, o Café Memória é um «espaço informal de partilha de experiências e informação, que pretende criar espírito de grupo e reduzir o isolamento social», explicou Catarina Alvarez, psicóloga da Alzheimer Portugal. Já acontece em 20 pontos do país, em conjunto com vários parceiros, uma vez por mês, com a pandemia adoptou-se o formato digital, em versão semanal. Outra boa prática na área da saúde é o projecto abem, que já garante medicamentos gratuitos a 24.268 pessoas em 175 concelhos. Trata-se de «um programa de âmbito nacional que assenta numa rede de parceiros: 219 entidades referenciadoras locais (164 são autarquias) e 1082 farmácias», disse Maria João Toscano, diretora executiva da associação Dignitude. O papel dos municípios na dinamização de projectos locais de saúde foi ilustrado com o exemplo de Cascais, em que o trabalho é articulado com a rede social do concelho, «de forma concertada e não em silos», garantiu Carla Semedo, vereadora do município.
A conferência inicial deste painel dedicado à Saúde Local foi proferida pelo farmacêutico e presidente do município do Bombarral, Ricardo Fernandes, que ressalvou a importância de uma «gestão próxima das populações» por parte dos municípios, em particular na área da saúde, sendo, por isso, importante aproveitar as oportunidades da descentralização de competências para o poder local. Como exemplo, destacou o papel do seu município quando, no pico da pandemia, facilitou vários meios para combater a COVID-19. Referiu ainda que os municípios devem ter um papel importante na promoção da saúde, dando exemplos de projectos que visam promover actividade física junto da população sénior, e ainda de programas que incentivem a fixação de médicos nos territórios de baixa densidade. «As associadas da Plataforma podem ter um papel importante na articulação com os municípios e as juntas de freguesia», desafiou.
Prioridade é prevenir a saúde mental
Na conferência sobre os desafios da saúde mental para a próxima década, o psiquiatra António Leuschner, presidente do Conselho Nacional de Saúde Mental, alertou que a saúde mental continua a ser um dos «parentes mais pobres da saúde», sendo a prioridade integrá-la na rede de cuidados de saúde, criando os meios adequados para que dê resposta a quem dela precisa. «Só assim é possível vencer o estigma», defendeu António Leuschner. A pandemia trouxe a saúde mental para a ordem do dia. Hoje, um em cada cinco portugueses tem sofrimento psicológico. «Investir na prevenção é uma prioridade, para agir sobre o sofrimento psicológico, antes do aparecimento da doença mental», afirmou Alexandra Antunes, da Ordem dos Psicólogos.
A iniciativa cidadã Manifestamente é um exemplo de programa de promoção da saúde mental, que nasceu já durante a pandemia e disponibiliza um Kit Básico de Saúde Mental. Foram realizados workshops online e capacitados 160 colaboradores de 45 autarquias. Como disse Beatriz Lourenço, vice-presidente da associação, «comparamos a saúde mental a cozinhar arroz-doce: cada um tem a sua receita, mas há ingredientes fundamentais». Outro projecto que aposta na prevenção é a Casa Grande, um projecto da Associação Portuguesa de Síndrome de Asperger (APSA), que oferece um programa de treino de competências funcionais e sociais a jovens com síndrome de Asperger. «Sem acompanhamento, estes jovens vão desenvolver doença mental», afirmou Piedade Monteiro, fundadora da APSA. O programa inclui uma vertente de empregabilidade e há já 25 jovens integrados em empresas, alguns com contrato de trabalho. A equipa técnica da APSA mantém um papel de mediação, o que torna o projecto «único e inovador».
Na Baixa de Lisboa, a Unidade de Saúde Familiar implementou o primeiro projecto de prescrição social do país. O termo foi criado no Reino Unido há 20 anos e representa uma resposta integrada, por parte dos cuidados de saúde primários, aos problemas não clínicos dos utentes, que podem espoletar ou agravar doenças físicas e mentais. «Tentamos estar sensíveis ao contexto da pessoa e, através da prescrição social, as pessoas são encaminhadas para serviços sociais na comunidade, que podem ir de centros de dia, a universidades sénior ou plataformas de procura de emprego», explicou o médico Cristiano Figueiredo, que destacou a importância do papel do assistente social nos cuidados primários, como agente que faz a ligação à comunidade.
Tecnologia a favor da saúde
A pandemia acelerou a comunicação à distância no sector da saúde. As consultas de telemedicina dispararam em Portugal e a necessidade sobrepôs-se aos receios relativos à falta de literacia dos utentes e de formação dos profissionais da saúde. Para além das vantagens para a saúde dos utentes, a expansão da TeleSaúde permite «um aumento de 48 por cento de dados por ano», de acordo com Teresa Magalhães, professora na Escola Nacional de Saúde Pública e Coordenadora do Grupo de Trabalho para a Gestão da Informação em Saúde da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares. «O grande desafio para a saúde digital é saber usar estes dados de forma útil», considerou.
A cobertura 5G trará vantagens ao universo da TeleSaúde, ao garantir maior largura de banda, menor latência, que facilita a sincronização, e possibilidade de interligar um grande número de dispositivos num espaço físico pequeno. A má notícia é que, ao contrário do habitual, Portugal terá «o último lugar na Europa no lançamento desta infra-estrutura», disse o engenheiro Rogério Carapuça, presidente da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações, que proferiu a conferência inicial deste painel, dedicada à transformação digital na saúde. Rogério Carapuça atribuiu o atraso às regras da ANACOM – Autoridade Nacional de Comunicações, «que não incentivam os operadores a investir na rede». O 5G é uma tecnologia «potencialmente disruptiva», mas para aproveitar a sua potencialidade é preciso «adequar os processos».
Rui Nêveda, pneumologista, trouxe o exemplo de uma boa prática implementada na Unidade Local de Saúde do Alto Minho: o Programa de Telemonitorização da Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC). Instalado em 2014, o programa fez 12577 espirometrias nos centros de saúde. Mais de 90 por cento dos utentes convocados para o exame compareceram, não obstante grande parte ser população idosa sem literacia digital. «É a tecnologia que se adapta ao doente e não o contrário. É uma das chaves de sucesso do programa. A outra é a humanização, a relação que se cria com os doentes», explicou o médico. O pneumologista e presidente da Fundação Portuguesa do Pulmão, José Alves, anunciou que a Clínica Virtual vai entrar em funcionamento ainda em Novembro, assegurando consultas virtuais e meios para fazer o diagnóstico precoce de DPOC e cancro. Esta tecnologia facilita ainda a realização de estudos epidemiológicos. «É uma ferramenta nova para resolver problemas velhos e funciona mesmo», assegurou José Alves.
Já o farmacêutico Fausto Almeida, representante da ANF, falou das farmácias enquanto espaços de saúde onde a tecnologia é amplamente usada. «As farmácias foram a primeira entidade de saúde a informatizar os processos a montante e a jusante», confirmou. A integração no Serviço Nacional de Saúde (SNS) é agora a prioridade e as farmácias «têm vindo a desenvolver serviços de proximidade com tecnologia capaz de ser integrada no SNS». Dois exemplos são a Operação Luz Verde e o projecto Farma2Care, que articularam vários parceiros para facultar nas farmácias medicamentos hospitalares (no caso do Centro Hospitalar Universitário de São João medicamentos nas áreas do VIH/SIDA, esclerose múltipla e cancro da mama). Também a linha 1400, que permite a encomenda de medicamentos por telefone, e a App Farmácias Portuguesas, foram destacadas pelo farmacêutico.
No encerramento dos trabalhos, Isabel Saraiva, Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Plataforma Saúde em Diálogo, realçou a importância dos vários momentos de partilha ao longo desta conferência e destacou o carácter inovador e colaborativo dos vários projectos apresentados, que fazem a diferença nas vidas de cada cidadão. Referiu que é importante que estes projectos sejam dados a conhecer publicamente sob a forma de publicação. Já a presidente da ANF, Ema Paulino, deixou «o compromisso das equipas que trabalham nas farmácias» no apoio à implementação dos temas debatidos e sua adequação às realidades locais, quer através da articulação com a tutela, quer com as autarquias, quer no envolvimento das associações das pessoas que vivem com doença nesta estratégia comum em prol da saúde de todos.
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