Os Pobres, por Maria Filomena Mónica, A esfera dos Livros, 2016, é um olhar de socióloga num caminho trilhado por diferentes profissionais que há décadas questionam quantos pobres temos, onde estão, que fazer pela sua dignidade e promoção, afazeres que abarcam diferentes cientistas sociais até à nova falange de profissionais que praticam a assistência e a inclusão de desempregados de longa duração. A autora explica o que vem: “Este livro não é tanto sobre os pobres, embora eles dele façam parte, mas sobre a perceção que as elites tiveram e têm da pobreza”. O seu questionamento é amplo e excede o nosso país, pergunta-se pelas diferenças entre pobreza absoluta e pobreza relativa, o futuro do Estado Social e como têm sido vistos os pobres nos últimos 200 anos, num conjunto de países.
Na adolescência, a autora escreve um diário com registos críticos sobre ricos e pobres. Perplexa quanto à revolta que sentiu e à necessidade de ter escrito um diário, traça o seu itinerário biográfico, desde a infância em que usava laços de tafetá no cabelo, em que jogava ao ringue, em que ia para o colégio acompanhada por uma criada, daí justifica o seu alheamento dos pobres. O que essas classes médias sabiam da pobreza tinha a sua primeira visibilidade nas criadas. No essencial, cabia às pessoas minimamente abastadas minorar o sofrimento dos carenciados. Ponto final. Mas a autora reporta números: “Entre 1860 e 1940, Lisboa assistira a uma certa modernização, mas a capital não era capaz de absorver a mão-de-obra que todos os dias aparecia vinda dos campos. Em 1910, a sua população era de 430 mil habitantes, em 1930 de 600 mil e, em 1940, de 700 mil. Apesar de terem sido montadas algumas fábricas, a cidade não se havia transformado num centro industrial. A pobreza dominava o cenário urbano. O povo de Lisboa incluía operários e funcionários públicos, descarregadores de carvão e soldados, varinas e criadas de servir, amoladores de facas e prostitutas, uma mistura na qual era quase impossível distinguir quem tinha emprego e quem não tinha”. Observa ainda a impressão que provocava a quem vinha de fora o número de mendigos, a coabitação sem embaraço nem revolta, nos bairros antigos, de gente rica e gente pobre.
Dentro desse mesmo itinerário biográfico, fala-nos do processo revolucionário vivido entre 1974 e 1976: “Notei que na oratória revolucionária nunca se falava de pobres. Os baladeiros prometiam a todos pão, paz, saúde, educação e habitação sem que alguém entendesse como isto poderia acontecer. Segundo a nova ideologia, existia, de um lado, a massa operária; e, de outro, o bando de capitalistas que mais não pretendia do que destruir a economia. Teve um programa de televisão, viu gente pobre. Esteve na América e constatou que os pobres não eram muito bem vistos, para muitos não passavam de uns falhados na competição para o êxito. E ajuda-nos a acompanhá-la numa incursão a Inglaterra da perceção da pobreza, capítulo fascinante, mergulhando depois no mundo dos artesãos, operários e proletários, fica ali registado algo de essencial do que viveu o nosso país entre os séculos XIX e XX.
A autora dirige agora a sua reflexão para o caso português, descreve a sociedade da primeira República e demora-se sobre o Estado Novo. Os pobres eram metidos na Mitra, em 1947 viviam ali 1700 pessoas. Lutou-se contra o pé descalço, houve críticas em contrário, obrigar toda a gente a usar sapatos não só representava um fardo desnecessário para os pobres como era uma imitação servil dos costumes estrangeiros. Nas suas conversas com António Ferro, Salazar foi um tanto taxativo quanto à pobreza: “Essa mendicidade não é um índice da miséria porque é antes um vício, porque a maioria dos que pedem não precisam de pedir. O caso não tem, portanto, a gravidade que se lhe atribui, salvo a sua teatralidade explorável, e pode ser resolvido, se houver boa vontade, castigando, severamente, os falsos mendigos, devolvendo à procedência, à sua terra natal, os pobres que não são de Lisboa e metendo os restantes, os autênticos, nos asilos existentes e noutros que se improvisem para acudir a esse mal”.
Havia os pobres e os remediados, os que podiam subsistir em meio rural, mas havia a miséria patente nos assalariados alentejanos, também aqui o levantamento que a autora faz é pasto para a reflexão. No fim do Estado Novo, surgiu uma embrionária segurança social, graças às medidas tomadas por Marcello Caetano. “Os beneficiários ativos de todos os regimes representavam, nesse período, 73% da população ativa, sendo, no entanto verdade que os pensionistas efetivos ainda eram apenas 5,8% da população ativa”. Com a revolução de 1974, tudo se transformou.
A autora faz um levantamento sumário dos pobres na literatura e nas artes, outro contexto que facilita a visão dos intelectuais, sobretudo no Estado Novo, e propõe para último tema do seu ensaio a visão da pobreza atual. Há outra perceção da pobreza, já ninguém é capaz de afirmar, ao contrário de um passado relativamente recente, que os pobres são preguiçosos, ladrões e bêbados e que, portanto, merecem o seu destino. A equação da pobreza hoje é vista com o emprego e as flutuações da crise. A chegada da troika fez-se acompanhar de novos cenários de miséria, aumento o número daqueles que na rua pedia esmola para comer. Crítica da ortodoxia da direita, recorda-nos os dislates da inefável Isabel Jonet, a presidente do Banco Alimentar que declarou que as redes sociais são “um dos maiores inimigos das pessoas desempregadas” após o que criticou quem, estando nessa condição, ficava “dias e dias inteiros agarrados ao Facebook ou a jogos ou a falsos amigos que não existem” em vez de participarem em ações de voluntariado. Estamos a falar da mesma Isabel Jonet que já tinha declarado “Se nós não temos dinheiro para comer bifes todos dos dias, não podemos comer bifes todos dos dias. Então esse empobrecimento é pelo facto que nós estávamos habituados a comer bifes todos os dias ou achávamos que podíamos comer. Não podemos”. Elenca o conjunto de estudos mais recentes sobre a pobreza em Portugal, lembra-nos que a definição de pobreza não é simples, terminando num desabafo: “Não sei se sempre teremos pobres entre nós, mas sei que devemos lutar por uma sociedade mais justa. Tal como a democracia política é o sistema que melhor nos protege na omnipotência governamental, também o Estado Social é o que melhor nos protege da imprevisibilidade das forças económicas. Sejam quais forem os ganhos na legislação social relativa a horários de trabalho, à democratização da cultura, à garantia de cuidados de saúde, ao apoio no desemprego, tudo é frágil o que implica que teremos de lutar uma e mil vezes por estes objetivos”. Os pobres existem, estão no centro do desafio social que todos temos pela frente.
Mário Beja Santos
Junho de 2017