Passageiro clandestino: uma respiração de serenidade

A jornalista e escritora Leonor Xavier escreveu o seu testemunho sobre a batalha que travou com um cancro, “O corpo estranho dentro do corpo, passageiro clandestino”. Parecem páginas de um diário, entremeadas de dizeres retirados de bloco de notas, mesmo de papéis avulsos garatujados em sala de espera. É essa a grande encenação literária, a inversão da escala, a mistura entre o palco e os bastidores, o estar a falar num ensaio ou a declamar para a assistência, e ludibriar-nos sobre os tempos e lugares. Depois amassa-se todos estes ingredientes, e neste caso, “Passageiro Clandestino”, por Leonor Xavier, Temas e Debates, 2014, temos obra-prima, um dos acontecimentos literários de 2014.

Somos logo espevitados no abrir das hostilidades: “As histórias podem contar-se ao contrário. Mas só quando começam e acabam, quando se lhes conhecem as curvas e os contornos, quando as personagens que as povoam estão definidas, quando há um começo e um fim que possa ser o começo de outra história e de outra, até mais não”. E assim vai começar uma aventura, a descoberta de que se tem cancro, de que se está à mercê dos médicos, dos meios auxiliares de diagnóstico, da quimioterapia, das biópsias, das esperas nos consultórios. E as operações e a ansiedade dos resultados.

A doente confronta-se com o novo vocabulário, nomes como leucócitos e plaquetas, basófilos e monócitos, como se dessas palavras pudesse saltar a faísca para o caminho da cura. Assumido o estatuto de doente, passamos a cavalgar solidariedades, os outros, amigos e vizinhos dão pormenores sobre o diagnóstico, a eficiência do hospital, a duração dos tratamentos, é assim silenciosa a união entre doentes de cancro. Porque há intimidades que só se devem ter dentro da confraria: “A partir de um certo momento, percebi que esta viagem de cancro só pode ser comentada com companheiros de percurso. A tendência daqueles que não acompanham estes meus passos é para solidariamente se aproximarem de mim (…) Agradeço-lhes do fundo do meu coração, sem palavras para lhes dizer o quanto forte é o agradecimento. Mas não sabem eles que estamos a seguir por caminhos colados, mas paralelos, desde o momento em que este ponto final do destino apareceu nas nossas vidas”.

Depois, redescobre-se a casa, os olhares sobre o mundo, as bagatelas ganham outro sabor, chegam mensagens de diferentes proveniências, o doente está exausto, as recordações e memórias desencontradas afloram em tropel, é bom que fiquem registadas assim, o leitor que lhes tire o proveito. Até porque há uma razão particular: “O cancro é uma viagem, e como as mais comuns viagens, tem as suas peripécias interiores. São elas uma boa razão para nos animarmos, já que há variados casos para contar, entre ir e voltar, partir e chegar”. A doente entrega-se à vontade de Deus, di-lo com recato, e com a mesma serenidade com que se despedirá do leitor, depois das batalhas, e com uma nova espera pelo caminho: “Não tenho previsões de futuro, mas projetos de viagem por dentro e por fora, num mundo a múltiplas dimensões. Na urgência do tempo, situo-me no presente, sem prazos, sem perguntar onde, quando, como será. Entrego-me. Estou certa de que desistir, desanimar, resignar-me não são bons caminhos para perceber como consenti que o passageiro clandestino tenha abusado de mim. Nada melhor do que um palavrão bem pronunciado, para dizer a dor. O amor à vida, que não é coragem nem bondade, que não é inteligência nem dever, é o dom que tudo explica”.

A batalha é complexa, em estados de alma e o corpo a ceder. Tudo é pasto para observação e há registos que transbordam as bermas para a literatura mais admirável, assim: “Na sala de quimioterapia onde nos alinhamos, os doentes, tomei o meu lugar, estou plugada por fios fixados entre os recipientes com misteriosas e temíveis substâncias e o cateter no meu peito. Pingo a pingo pingando, as substâncias seguem no mais profundo de mim, a resgatar-me o sangue, num processo que não sei nem hei de nunca saber qual é. E aqui, também, eu vivo a descoberta de outros outros e outras. No vocabulário da comunicação, o silêncio, o adormecimento de alguns, o corpo frio de outros, cobertos com uma manta de lã, ou o aconchego da cabeça, em repouso pousada”. É uma viagem cheia de desassossego, de miragens, de conversas interiores, de anotações sobre os companheiros de viagem, coisas simples, mas é assim que se tempera a intimidade entre o doente e os seus leitores: “O senhor António tem uma grande parecença com o ex-presidente francês François Mitterrand, vá-se lá saber porquê. A mesma altura, o mesmo nariz e boca e careca, apesar dos olhos mais vivos e da pele mais animada, fala da esposa, feliz no casamento. Entre ele e eu, um casal. Vai soltando discurso, animado, à espera do resultado das análises e da consulta”. Discorrem poemas, trechos de romances, resquícios de conversas, jorra a sabedoria do evangelho, todos os doentes estão irmanados pelas mesmíssimas dores. Quem escreve sente que levou e leva uma vida privilegiada, que foi cumulada de benesses e que com este cancro a vida passou a ter outro tónus, outra dimensão. Não tem medo da morte mas temo o sofrimento. Há momentos em que esta prosa oscila entre o mágico, é uma descida às catacumbas do que há de melhor no pensamento ocidental, fala-se da razão, do destino, da serenidade. Como se a existência estivesse em risco iminente, os outros ganham espessura e Deus eleva-se até aos confins do ministério, habituados a diferenças aprende-se esta nova linguagem da irmandade e cita-se a propósito versos de Carlos Drummond de Andrade: “Qualquer tempo é tempo./ A hora mesmo da morte/ é hora de nascer”.

A literatura universal está pejada de grandes peças sobre o amor à vida, há incursões inolvidáveis sobre o amor à vida e relatos sobre cancro, estou a pensar em Susan Sontag, entre outros cânticos pungentes e odes à esperança. Mas é consolador este registo de Leonor Xavier, escrito em linguagem do nosso tempo, este soberbo libelo sobre a vitória à morte, este monumento em que se conclama a alegria porque se sobreviveu e não se esquece que há a crença no tempo que há de vir.

 

 

Mário Beja Santos

Março de 2015

 

 

 

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