“Médicos e Doentes, Guia do Leigo para Assuntos de Médicos e Medicina” era o título do livro de um conceituado cirurgião britânico, Kenneth Walker, publicado em 1957 pela reputadíssima Penguin Books e editado pouco depois pela Ulisseia Editora na sua Coleção Pelicano.
O que me leva a falar de um livro inabalavelmente obsoleto em matérias determinantes para a promoção da saúde e tratamento da doença? Vivemos hoje no culto da urgência, submetidos à tirania do instante, pressionados pelas exigências do chamado momento presente que nos faz perder o sentido da ligação das coisas, dos espaços e dos lugares, é como se nesta modernidade líquida algumas décadas atrás já estivessem no fundo da História. Há nexos causais que vale a pena dominar para perceber o significado do paradigma da saúde, na atualidade.
Em 60 anos, como iremos observar, as ciências médicas deram passos gigantescos, práticas então irrefutáveis caíram em desuso, basta pensar na evolução estrondosa dos meios auxiliares de diagnóstico, nas classificações médicas, na vertiginosa evolução das especializações, no triunfo de tecnologias então impensáveis. Chamou-me à atenção particularmente o título, a mundialmente célebre Coleção Pelicano convocava especialistas de primeiríssima água que tratavam questões densas e altamente respeitáveis em linguagem o mais acessível possível, enfim acicatou-me a curiosidade saber o que é que um reputado cirurgião pensava estar na vanguarda do tempo quanto à comunicação entre médico e doente.
Confesso que a leitura é atraente. Logo o primeiro capítulo fala no frasco do remédio, era de facto o frasco a apresentação mais comum do remédio a par do boião e muito mais atrás a caixa com comprimidos. Ainda estamos num tempo das preparações magistrais, a farmácia dispõe de armários e prateleiras pejadas de pós e líquidos. É estimulante a narrativa que o cirurgião faz sobre a evolução dos medicamentos, tudo começou pelas plantas, foi num mundo vegetal que se andou à procura de alívios para o sofrimento e repostas para a cura. Seguiu-se a busca em produtos animais e todos recordamos como a insulina era extraída do porco. A nova era da medicina data de 1909, ano em que o grande químico Ehrlich descobriu o Salvarsan, poderoso remédio contra a sífilis. A partir daí, os químicos e a sua investigação chegaram a resultados cada vez mais surpreendentes, e assim se derrotou a sífilis, a disenteria amibiana, a doença do sono, a malária, a pneumonia e a septicemia. Seguiu-se a descoberta das sulfamidas que salvaram milhões de vidas.
Agora a atenção do cirurgião volta-se para a doença e para quem sobre ela se debruçou desde os feiticeiros até Hipócrates a Aristóteles, as várias teorias sobre a doença, analisam-se as doenças alérgicas e fala-se nos microrganismos patogénicos. Entende o cirurgião que é o momento azado para falar sobre a vida orgânica, como começou a vida, quais os microrganismos causadores da doença, o porquê das epidemias, as doenças infeciosas, a defesa do organismo contra a doença, a descoberta da penicilina, a ascensão da bacteriologia, daqui passamos para o modo como se preparam as doenças, fala-se da febre-amarela e das doenças parasitárias. Detenho-me aqui só para refletir com o leitor que seguramente já leu livros de divulgação sobre medicina de hoje, esta vida orgânica na Terra dispunha de uma centralidade ainda há 60 anos, assim se encarava como determinante os microrganismos, os vírus e as bactérias, havia ainda problemas insolúveis, hoje naturalmente resolvidos porque a bacteriologia deu saltos gigantes.
Segue-se uma aliciante leitura sobre o médico, o físico medieval, o boticário e o cirurgião, fala-se do charlatanismo e dos curandeiros, também dos honorários médicos, da conduta e dos costumes dos médicos, e ocorre ao autor uma confissão: “Quando olho retrospetivamente a minha vida profissional, o que surpreende não é que os meus doentes tenham por vezes feito perguntas sobre a natureza do tratamento que eu propunha fazer-lhes, mas sim que o tenham feito tão raramente. Muito doente do hospital foi levado para a sala de operações sem o mínimo do conhecimento da razão de que era necessária uma operação e sem qualquer noção do que lhe seria feito enquanto estava anestesiado”. E a esta confissão segue-se surpreendentemente outra: “Há ocasiões em que o médico tem razão em sonegar informações ao seu doente, pelo menos de momento – por exemplo quando sabe, desde o início, que será provavelmente necessária uma operação, mas que esta não pode ser efetuada se não depois de ter sido feito um tratamento preliminar prolongado”. Creio que hoje esta frase está totalmente descontextualizada, mudou muito o conceito sobre o que se deve ou não dizer em termos de verdade a um doente. Prossegue este raciocínio sobre o direito do doente ouvir uma segunda opinião, o conceito de erro médico e a reparação sobre tratamentos incompetentes. E acerca do direito do doente em morrer em paz, o autor recorda as palavras do Dr. Warfield Longscope:
“Quanto mais velho vou ficando menos simpatia tenho pelos conscienciosos esforços para prolongar simplesmente a vida na velhice. A restrição de atividades, a enfermagem carinhosa, a atenção assídua em humana dos médicos tendem, bastantes vezes a levar os velhos cambaleando pelo sítio do perigo e deixá-los feitos destroços humanos desamparados e trémulos. Tendo chegado a esta fase, parece-me para além das suas possibilidades ou dos seus desejos manterem a única ciosa que possuem, esse fio de vida que os prende inutilmente ao mundo. A filosofia do Aes Triplex, de Stevenson, agrada-me mais. Diz ele que ‘não amamos a vida senão vivendo’. E mais ainda, não se extingue a vida com mais garbo do que agonizando em deltas arenosos?”.
O autor documenta historicamente o papel do cirurgião, o estudo da anatomia, as transfusões de sangue, os anestésicos, a importância da descoberta de cirurgia antissética e falam-nos depois de uma nova especialização, a psiquiatria e a psicanálise. E assim se chega aos chamados sintomas mais comuns às dores, e confesso que foi este o parágrafo de Kenneth Walker que mais me impressionou:
“Keats julgou que ‘um mundo de dor e provações’ era necessário para nos sacudir da nossa autocomplacência, e não há dúvida de que só um estímulo muito poderoso é capaz de nos despertar do êxtase hipnótico por um momento ou dois e de evocar em nós admiração pelo mistério da nossa existência. Assim, esta estouvada e precipitada carreira de toda a nossa vida pode ser momentaneamente interrompida por uma dor intensa que nos force a encarar os problemas a que andamos sempre fugindo. Um inexorável ataque de angina de peito, uma crise violenta de falta de ar, e um mundo frívolo em que até então tínhamos vivido oscila primeiro, parte-se ao meio depois e finalmente desmorona-se, revelando atrás de si as estranhezas das quais sempre preferimos fugir. Medido pelo relógio, este relance de momentânea escuridão franjada de luz durou um segundo ou dois, e depois a dor desvanece-se de modo que nos encontramos de novo onde estávamos antes, restabelecendo o contacto com as coisas velhas e familiares – o desenho da colcha, a luz tamisada do quarto, o quadro pendurado na nossa frente. No entanto, estas coisas perderam para nós algo da sua primitiva solidez. São muito menos convincentes do que eram antes, tendo-se tornado coisas transitórias, de aspeto falso, inconsistentes, assemelhando-se a atavios de teatro. Durante aqueles angustiosos momentos por que acabamos de passar, a vida e morte deslizaram juntas, e, embora por fim fosse a morte a retirar-se, levou consigo algo das nossas ilusões e algo da nossa satisfação”.
Era assim há 60 anos a noção do poder médico, o olhar do humanista sobre a vida e morte, acabava de sair uma nova Lei de Saúde na Grã-Bretanha, propunham-se um encarecimento aos direitos do doente, era esta a medicina da época. Leitura estimulante para procurar pôr em cima da mesa a gama de eventos, tecnologias, equipamentos, medicamentos, etc, que nos separam deste passado que deixou em muitas cidades, vilas e aldeias bustos de agradecimento a médicos de invulgar solicitude, impensáveis na nossa modernidade líquida, em que tais relações são marcadamente precárias, de exclusivo perfil profissional.
Mário Beja Santos
Maio de 2016