
Memórias de um dos últimos grandes intelectuais públicos
Tony Judt (1948-2010) foi um grande pensador do nosso tempo, autor de textos indispensáveis para o entendimento da nossa contemporaneidade, caso das obras: Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, O Século XX Esquecido, História da Europa desde 1945. Foi várias vezes premiado pela singularidade e profundidade da sua investigação, pelo desassombro das suas opiniões.
Antes da sua morte, deixou-nos um testemunho notável, recentemente publicado entre a nós: O Chalet da Memória (Por Tony Judt, Edições 70, 2011). Começa por nos explicar do que vai morrer: “Sofro de uma doença motora neurológica, uma variante de esclerose lateral amiotrópica (ELA). O que é característico da ELA é que, primeiro, não há perda de sensação e, segundo, não há dor. Ao contrário de quase todas as outras doenças mais graves ou mortais, ficamos livres para contemplar à vontade, e com um desconforto mínimo, a progressão catastrófica na nossa própria deterioração”. E explica melhor: “A ELA constitui uma prisão progressiva, acompanhada da perda da fala. Primeiro, perde-se o uso de um ou dois dedos; depois, um membro; depois, e quase inevitavelmente, os quatro. Os músculos do tronco definham quase ao ponto do torpor, um problema concreto do ponto de vista digestivo mas que também põe a vida em risco, pois respirar torna-se a princípio difícil e, com o tempo, impossível sem ajuda externa, na forma de um aparelho com bomba de ar e tubo. Nas variantes mais extremas da doença, a par da disfunção nos neurónios motores superiores (o resto do corpo é conduzido pelos chamados neurónios motores inferiores), torna-se impossível engolir, falar e até controlar o maxilar e a cabeça. No meu actual estado de declínio, na prática estou quase quadriplégico. Com um esforço extraordinário, consigo mexer um pouco a mão direita e aproximar o meu braço esquerdo quase 20 centímetros do meu peito”.
Tendo-lhe sido diagnosticado a ELA em 2008, veio-lhe logo ao pensamento um certo chalet suíço onde em pequeno passara férias com os pais e explica esta associação: “A qualidade notável desta doença é que permite que a mente possa reflectir sobre o passado, o presente e o futuro, mas gradualmente nos vai privando de qualquer forma de converter essas reflexões em palavras”.
Na doença, Tony Judt começou a escrever histórias completas na sua cabeça, depois deu-lhe uma ordem e numa onda de optimismo, cheio de coragem, não hesita em contar-nos: “Se temos de sofrer assim, é melhor ter uma cabeça bem apetrechada: cheia de reminiscências utilizáveis, facilmente acessíveis a uma mente de pendor analítico. Só faltava um armário para a arrumação. Que eu tenha tido a fortuna de também descobrir isto entre as boas tralhas de uma vida, parece-me muito próximo da boa sorte”.
O chalet da memória abrange três tipos de registo: reminiscências da infância, dos lugares onde se viveu, a noção de territorialidade; a idade da formação e toda a vida universitária; a descoberta e ultrapassagem das diferentes ilusões e desilusões da juventude; e a fé inabalável no homem e nos valores da liberdade, da justiça e da partilha.
Logo na primeira parte alude à austeridade em que foi criado, em pleno pós-guerra e comenta o que vê à sua volta: “A riqueza de recursos que aplicamos ao entretenimento apenas serve para nos escudar da pobreza do produto; também assim é na política, onde o tagarelar constante e a retórica infindável disfarçam um vazio que apenas suscita o bocejo… Se queremos governantes melhores temos de aprender a exigir mais deles e menos para nós próprios”. Da sua formação, tece elogios ao ensino e não à instituição, não esconde o seu reconhecimento para o princípio da meritocracia; descendente de judeus lituanos, gostou na juventude da vida dos kibbutzim, gostou muito de Cambridge como depois gostou do ambiente parisiense e da vida na École Normale Supérieure. Inevitavelmente, havia que falar da contestação e da revolução, estamos nesses prodigiosos anos 60, e profere uma observação lapidar: “Não percebemos um dos pontos de viragem mais influentes. Foi em Praga e em Varsóvia, naqueles meses de Verão de 1968, que o marxismo se estatelou. Foram os estudantes rebeldes da Europa Central que começaram a minar, a desacreditar e a derrubar não só uns quantos regimes delapidados, mas o próprio ideal comunista. Nós, no Ocidente, fomos uma geração com sorte. Não mudámos o mundo; em vez disso, o mundo, obsequioso, mudou para nós. Tudo parecia possível: ao contrário dos jovens de hoje, nunca duvidámos de que haveria um trabalho interessante para nós e por isso não sentimos a necessidade de desperdiçar o nosso tempo em algo tão degradante com operações de gestão. Protestámos contra as coisas de que não gostávamos e ainda bem que o fizemos, aos nossos olhos, pelo menos, fomos uma geração revolucionária. É uma pena que tenhamos perdido a revolução”.
Declara-se um homem comprometido, ele foi criado com palavras, educado no sionismo trabalhista, na utopia dos kibbutzim, considerou que a crise da meia-idade o tinha curado do solipsismo académico pós-moderno, foi aí que se tornou num intelectual público repudiando o intelectual servil que tem medo de pensar por ele próprio. Reflectindo sobre o globalismo, chama a atenção para a identidade como a recusa e a censura daqueles que exclui. E adianta: “O Estado, longe de desaparecer, poderá tornar-se extremamente necessário: os privilégios da cidadania, a protecção dos direitos dos titulares de cartão de residência, serão ostentados como triunfos políticos”. Nas democracias estabelecidas, os demagogos intolerantes irão exigir testes – de conhecimento, de língua, de atitude – para determinar se os recém-chegados desesperados são merecedores da entidade britânica ou holandesa ou francesa. Já os estão a fazer. Neste admirável século novo, iremos ter saudades dos tolerantes, dos que estão à margem: a gente das franjas. A minha gente”. É uma narrativa controversa que lhe deve ter custado rancores e azedumes. Porque ele escreve coisas assim: “Acho estranho que os judeus americanos tenham comprado um seguro territorial no Médio Oriente com medo que regressemos à Polónia de 1942.
Os judeus na América são mais bem-sucedidos, integrados, respeitados e influentes do que em qualquer lugar ou época na história da comunidade. Porque é que a identidade judaica contemporânea nos EUA está tão obcessivamente ligada à recordação do seu próprio desaparecimento? Se Hitler nunca tivesse acontecido, o judaísmo podia muito bem ter entrado em desintegração. A assimilação já ia bem avançada. Na Alemanha, muitos judeus consideravam-se alemães. Na Europa Central, em especial no triângulo Praga-Budapeste-Viena, uma intelligensia judaica secularizada estabeleceu a base característica para a vida judaica pós-comunitária (…) Os judeus dos tempos modernos vivem de uma memória preservada. Ser judeu consiste essencialmente em lembrarmo-nos do que em tempos significava ser judeu (…) Não espero que Hitler regresse, opto por invocar o passado judaico que é insensível à ortodoxia. Não basta estarmos nas franjas relativamente às convenções de outros povos; devemos também ser os críticos mais inclementes das nossas. Sinto que tenho uma dívida de responsabilidade para com o passado. É por isso que sou judeu”.
Pouco tempo depois desta narrativa, Tony Judt, falecia. Este pequeno excurso à volta da sua história é um testemunho notável para um homem da sua geração, a dos anos 60, é um hino de coragem de um doente com ELA.
Mário Beja Santos
Março de 2012