O magnífico regresso de um grande senhor da literatura vernacular
Há três nomes indispensáveis, na literatura portuguesa do século XX, para estudar a essência do castiço e do vernacular: Aquilino Ribeiro, Tomaz de Figueiredo e João de Araújo Correia. Perde-se muito por estes três nomes não serem praticamente conhecidos pelas novas gerações. Foram três operários laboriosos no levantamento, de acordo com as regiões observadas nas suas obras, de vocábulos de um mundo rural que hoje desapareceu; deixaram-nos o registo mais espantoso de usos e costumes do Norte do país, da fidalguia e do povo, dos produtos da terra, da arreigada religiosidade do povo, e escreveram como nunca mais se voltará a escrever, com um desvelado encanto.
Serve este preâmbulo para saudar a reedição de Contos Bárbaros, de João de Araújo Correia, Âncora Editora, 2014. João de Araújo Correia é um homem do Douro, não é por acaso que nos seus contos ele refere com regularidade o Cima-Corgo, mas o que descreve espraia-se para outras margens. Sobre estes Contos Bárbaros, o crítico João Bigotte Chorão deixa-nos uma síntese elucidativa e tonificante: “Contos Bárbaros, sobre ser um título, é um universo. Quem quiser conhecer o homem, não vá mais longe. Ali verá a velha que sobrevive a si mesma, e volta pontualmente à feira que já não existe, e morre como vivera: numa esquálida solidão de bicho. Ali verá o avô que, cioso do que amorosamente guardara para o neto, o mata, tomando-o, no escuro da noite, por ladrão. Ali verá o viúvo assisado que, depois de criar os filhos, perde a cabeça por uma rapariga. Ali verá a fidalga, modelo de formosura e bom senso, que vem a casar com o mais desinfeliz dos seus criados… Melhor publicidade para escrita genuína para o mais exigente paladar, não pode haver.
Este médico a tempo inteiro e escritor de “horas mortas” domina com mestria absoluta a técnica do conto: o arrebatamento e a clareza com que agarra o primeiro parágrafo o leitor pela gola, o desenvolvimento sem repetições, não há para ali enxundia, é tudo nervo, até ao final, decisivo, definitivo. Capaz de uma mordacidade e de crítica acerada, obrigando-nos a sorrir da construção das frases e da luminosidade do desfecho. Veja-se, a propósito do conto “Os Livros do Diabo”:
“Tinha livros que ensinavam tudo. Alguns herdara-os do pai, que fora um dos mais ricos fidalgos de Cima do Douro. Outros comprava-os, sabe Deus com que dificuldades, e também lhos enviavam alguns amigos com quem se carteava. Resultado: juntou uma livraria, que nem quatro juntas de bois alancariam de um sítio. Para que é tanto livro? Perguntei uma vez ao padre Bento na sala da livraria. Resposta dele: ‘Para me esquecer que vivo entre burros e para manter os burros em respeito. Há tempos no sótão do Arcipreste, íamos abancar à jogatina, armou-se questão entre mim e o de Vale-de-Vassoiras a troco de uma bacorada que este sustentou a quatro pés. Não houve tremenhos de o convencer do erro. O Arcipreste, leigo como ele na matéria, mas, conciliador, aconselhava-o a dar a manápula à palmatória. Isso dava ele! Enterrava no cabeção o queixo de vitela e punha-se a mugir:
– O padre Bento é um heresiarca.
Para não o escachar, pego no traseiro às costas, entro em casa, vou direito àquela estante do fundo e tiro de lá aquele bacamarte de lombo descosido. Abro o volume a folhas tantas, corro à do Arcipreste com a fúria do vento desencadeado e íntimo o vassoirano a ler de cima para baixo uma lauda de latim mais indigesto que paio frito com ovos. Através de silabada basta e sem apanhar do passo a mínima luzinha, chega ao fim e clama:
– Poenitet me.
– Mé? O que você precisava era que eu lhe fizesse engolir o bacamarte.
Parece-me insano exultar o que é reconhecidamente génio da nossa literatura. Não se percebe como estes decanos foram apeados dos gostos e preferências das novas gerações, nem os avós nem os pais e muito menos o Ministério da Educação os arvoram como guindastes e faróis do português medular, pagaremos por isso. A nossa língua é vibrante prazer quando se tem parágrafos como este: “O pomar, vizinho da casa, mais enferrujado que uma seitoira caída num ervaçal, foi limpo em meia dúzia de dias. No primeiro Abril, floresceu de modo que alagou a quinta e arredores de um aroma grosso inebriante. O sítio da horta, puro matagal, sentiu de novo a água a percorrer-lhe as veias, no afã de salvar legumes ricos”. Tanta beleza até ajuda a desmerecer o cruel silenciamento a que grandes escritores como João de Araújo Correia têm sido votados. Ainda bem que regressaram estes Contos Bárbaros!
Mário Beja Santos
Abril de 2015