Notas do meu diário em confinamento:

Notas do meu diário em confinamento:

Lembranças para todos os amigos e companheiros da Plataforma e suas famílias

Uma situação drástica, digam o que disserem, pode ser um agente altamente positivo na moldagem do nosso quotidiano, nas nossas aspirações, nas preocupações com os outros e sobretudo nos autocuidados que devem reger as práticas de saúde. A vida presenteou-me com situações-limite, foi o caso do meu confinamento na guerra da Guiné, em território de ameaça permanente, com emboscadas, flagelações, minas, golpes de mão, eu era um menino alferes e reaprendi a viver nesta tensão permanente, tinha 143 militares ao meu comando, essencialmente africanos, e centenas de civis que me cumpria defender, alimentar e zelar pela sua dignidade, com os meios ao meu dispor, naturalmente escassos. Foi uma lição de tal modo poderosa que a recordo neste preciso instante em que uma ameaça impende sobre todos nós, havendo que agir com prudência, amenidade e positividade.

A higiene é um pilar para deter o vírus, não falo só do banho, mas também das limpezas, do arejamento da casa, e daqui sigo para o comportamento cívico, de que estou a receber as mais imprevistas lições: o vizinho, a quem mandei uma receita de pezinhos de coentrada e que me bateu à porta com uma embalagem deste pitéu, houve só que cozer batata e ter um almoço de regalo; a vizinha, que não só envia biscoitos pela filha como expede mails a perguntar se eu preciso de fazer compras; e as conversas à varanda, ouve-se um burburinho na escada de serviço, e vimos todos à janela, ainda por cima temos um bom pretexto, gastou-se bom dinheiro na reparação da escada e há marcas de ferrugem, a administração do condomínio está em campo.

A vida continua, há que zelar pelas minhas doenças crónicas, fazer uma agenda de telefonemas para familiares e amigos, pôr-me regularmente em teletrabalho, umas vezes catando notícias que podem ser úteis para os destinatários, outras vezes escrevendo, deve-se manter a normalidade dos nossos projetos, é muito bom para a saúde. E essa vida continua melhor quando andamos em casa vestidos a preceito, nada de roupão ou pijama, a exceção é a roupa de trabalho quando se anda em limpezas, pela primeira vez na vida limpei o fogão, descobri que tinha sabonetes esquecidos numa prateleira, estavam lá ao fundo, encontrei embalagens de sal refinado, agora vou lançar-me na limpeza dos armários, pensar que destino vou dar a centenas de copos que não servem para coisa nenhuma, há para ali copos gravados, belezas de várias gerações, acho que chegou a hora de lhes dar uso.

Reaprendi a comer. O pequeno-almoço não pode ser mesmo pequeno, há o comprimido em jejum, e depois de beber café com leite e o papo-seco e uma peça de fruta seguem-se cinco comprimidos. A gestão da doença crónica deve prevalecer. No confinamento, não pode haver comezainas, um almoço com sopa e um prato que meta proteína, tenho a lista da semana (iscas, filetes, peixe cozido, almôndegas…), lanche frugal e um jantar de sopa, um pão com queijo mais uma peça de fruta. Procura-se dar cumprimento à Roda dos Alimentos, os legumes e a fruta são os donos da festa, com quase 75 anos não posso brincar roubando na proteína, nos lípidos e na muita água. Sempre a mesa bem posta, e dentro em breve vou usar os copos tão zelosamente guardados.

Tenho agora a oportunidade de ler livros e revistas que há anos aguardavam uma libertação de tarefas que não surgia. Este turbilhão causado pelo vírus trouxe oportunidades únicas de ver e ouvir a música nos melhores teatros de ópera e salas de concertos. Todos os dias recebo mensagens de Londres, Bruxelas, Nova Iorque ou Berlim, é uma delícia, é só escolher a hora certa e entretanto reencaminho para os meus amigos melómanos, há muito Beethoven e Mahler, muito Verdi e Wagner à nossa disposição, nunca me passou pela cabeça andar uma semana a saltitar entre o Metropolitan de Nova Iorque, o Scala de Milão e a Filarmónica de Berlim. Estou furioso com os espanhóis, perguntaram-me se me queria inscrever para ver espetáculos do Liceu de Barcelona ou do Teatro Real de Madrid, inscrevi-me, mas fui informado de que estou excluído, afinal os espetáculos são só para a Espanha, a Argentina e o Chile. Perdoo-lhes, eles não sabem a dor que sinto pela calamidade que assola a nossa vizinhança.

O meu professor de ginástica anda atarefado a preparar uma aplicação para retomarmos as aulas, enquanto aguardo mexo o corpo todo como acontece na ginástica de manutenção, dou voltas ao pescoço para contrariar a compressão das cervicais, mexo os pés em todas as direções para que as artroses me deixem em paz.

Pediram-me para eu depor sobre o que é a minha vida particularmente desde o dia 12, penso na filha que decidiu fazer quarentena porque deu aulas até muito tarde a turmas com 60 elementos, penso muito na minha neta, tem nove anos e sabe muito bem da tormenta em que vivemos pois uma parte da família do pai vive naquele centro do furacão que se chama Bérgamo, no norte de Itália. Penso que esta tormenta tem um elemento vitalizador, a sociedade em geral aperceber-se-á como os cuidados em saúde não são só um pilar da essência humana, são o fulcro da cidadania, do nosso cuidado com o Outro.

E falando para todos os meus queridos amigos e companheiros da Plataforma Saúde em Diálogo, endereçando os melhores e melhores votos de saúde a todos eles e seus familiares, penso que temos dado provas de solidariedade e de compromisso sem subentendidos, num grau que classifico de portentoso, onde todos nós estamos unidos para que haja mais e melhor prevenção da doença (tudo se alterará quando esta tempestade der bonança, e repensarmos que o cerne da nossa solicitude e os quadros da atuação política devem assestar na promoção para a saúde, formação, literacia, diagnóstico precoce, um novo modelo de vacinação, apologia em concreto de estilos de vida saudáveis…), e que o zelo no tratamento das nossas doenças seja alvo de uma reviravolta espetacular nas medidas de política de saúde. Estou absolutamente convicto que iremos ter uma política comunitária de saúde, a despeito de sistemas tão diferenciados. Acho que todos nós, na União Europeia, iremos aprender muito no rescaldo deste mundo devastado, além dos desafios energéticos, da inovação tecnológica, do paradigma digital, haverá um modelo social europeu onde se dará primazia aos direitos à saúde. E daí, eu sentir confiança e esperança nos dias melhores que se avizinham, vivendo no meu confinamento sabendo que em breve retomaremos a nossa obra.

Mário Beja Santos