Estaline e os cientistas, uma história de triunfo e tragédia

Não é um libelo acusatório, é uma investigação em torno de um sistema ideológico liderado por um mentor convencido que podia refazer o mundo à sua medida. Também se conta que os confrontos entre os cientistas, as autoridades políticas e os indiscutíveis interesses económicos e financeiros e o peso da religião vêm de muito de trás, basta pensar em Galileu. Em “Estaline e os Cientistas”, por Simon Ings, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2017, percorremos o longo circuito dessas relações entre a ciência e o poder soviético. Aqui se conta a história de muitos cientistas talentosos que trabalharam na Rússia no período entre os anos que precederam a revolução e a morte do “Grande Cientista”, José Estaline. Uma tortuosa caminhada em que se cruzam as histórias de cientistas, políticos, ideólogos num retrato onde não faltou o horror, a paranóia dos complôs, onde foram alcandorados como heróis charlatães como Trofim Lysenko (que negava a existência dos genes). Uma investigação que revela essa dimensão sombria da destruição da centenas de cientistas, mandados executar ou deportar, e a tomada de decisões pretensamente científicas fizeram morrer à fome milhões de pessoas.
Este livro é um documento de leitura obrigatória, está aqui a vida científica na União Soviética, desde o nascimento até meados dos anos 1950. O leitor verá desvelar-se aos seus olhos nomes como Vernadski, um brilhante cientista que marcou profundamente o século XIX, o que dividia revolucionários como Lenine e Bogdanov, as primeiras grandes ilusões: “Os bolcheviques acreditavam que a prática governamental preencheria as lacunas do seu conhecimento político. Armados com a ciência da governo de Marx, tinham simplesmente de manter o rumo, manter o poder, apegarem-se às suas crenças e esperarem que o mundo cumprisse a sua promessa”. Era um idealismo que custou caríssimo: “Os bolcheviques tinham o controlo do governo mas dificilmente estavam em posição de dirigir o país. Não fora o minúsculo partido dos bolcheviques que havia tomado as herdades e as fábricas da nação. Fora o povo: sem recursos, nem educação, nem formação, nem sequer muita auto-disciplina. Atirar um capataz ao rio é fácil. Como é que se dirige uma fábrica?”. Aí entraram os engenheiros em cena, havia que desenvolver a agricultura, construir estradas e fábricas, dar meios de trabalho aos físicos, condições de investigação à botânica aplicada. Tudo se complica com a guerra civil, o bolchevismo triunfa, dá-se importância aos ritmos do trabalho, constroem-se barragens, a electricidade inunda a Rússia, a escolaridade é obrigatória.
É nesta fase de consolidação que se desenvolve o culto da ciência, sonhava-se que a União Soviética se tornasse no primeiro Estado do mundo gerido cientificamente, era pois essencial a educação pública sobre a ciência. Começasse então a falar na genética, a encontrar novos rumos para a biologia, para a neurologia. Com a morte física de Lenine, com a ascensão implacável de Estaline e o exílio de Trotsky, desenvolve-se o sonho de moldar a humanidade. O autor observa: “O marxismo era mais do que uma filosofia política; era uma operação cultural que supostamente iria unir todas as disciplinas científicas numa única. Marx havia sonhado criar uma política científica. Mas na corrida para se cumprir o sonho dele todo o projeto estava a ficar virado de pernas para o ar. A política não se estava a tornar mais científica – mas estava a aprender a trajar vestes científicas”.
O estalinismo passa a tomar conta de tudo, o espírito académico, o funcionamento da Academia das Ciências, estão em perfeita sintonia com a vontade do “Grande Cientista”. Ele vivia obcecado pela ideia de que seria possível alterar a natureza das plantas, uma obsessão que se tornou no seu único passatempo. Quando o escritor Maxim Górki chegou à Rússia ficou impressionado como alguns projectos de construção como o canal do mar Branco que liga os mares Báltico e Branco, a construção daquela que era na época a maior central hidroelétrica do mundo, a construção daquela que era, e ainda é, a maior siderurgia do mundo. Era um desenvolvimento propagandeado no país no estrangeiro, claro está que se omitia o número daqueles que morreram durante a sua construção, dos aldeões forçados a sair das suas casas, entre outras minudências. Quando se dá o assassinato de Kirov, o único rival de Estaline à sua altura, seguiu-se uma vaga de terror que instalou a direcção política absoluta, ir-se-á encetar um período de julgamentos permanentes que culminarão na decapitação do oficialato e na ascensão de charlatães no mundo da ciência. Lysenko será a figura mais grotesca deste apadrinhamento de Estaline pelo seu mundo de sonhos.
Com o passar dos anos, com o endeusamento perpetrado pelos seus asseclas, Estaline perdeu o contacto com a realidade, aos poucos isolou-se, temeu conspirações, inventou outras. Pouco antes da sua morte, tinha sido gizada uma pretensa conspiração de médicos, era uma vez mais a paranóia de que a clique judaica queria tomar poder. A par disto, a ciência deslumbra e vai mostrar resultados, dentro de poucos anos o Sputnik será lançado no espaço. A agricultura coletivizada falhou rotundamente, a Rússia teve de importar cereais em permanência para alimentar o seu próprio povo. E o autor recorda: “A ciência soviética era extraordinária, e deveria ter produzido muitos mais milagres do que produziu. Todo o projecto bolchevique foi extraordinário, reconstituindo os resquícios do Império Russo até que ele fosse novamente o maior Estado territorial da terra. No entanto, à medida que o tempo passa, aquilo que surpreende não são as conquista – as cidades de mais de um milhão de habitantes na Sibéria mais profunda, as minas e as ferrovias e as barragens – mas sim o enorme desperdício que essas conquistas geraram”. E Simon Ings despede-se com riso sardónico de nós: “Todos somos agora uns estalinistazinhos, convictos da eficácia da ciência para nos resgatar de todas e quaisquer crises, independentemente daquilo que a ciência possa fazer, impacientes com tudo o que os cientistas possam realmente dizer”.
De leitura obrigatória, nestas comemorações do centenário da revolução soviética.
Mário Beja Santos
Agosto de 2017