A alimentação é talvez o cruzamento mais significativo entre o que nós temos de material e animal com o que temos de humano e espiritual. Dos alimentos esperamos satisfação à mesa, convivência, saúde. Desde que o mundo é mundo que a alimentação aparece envolta em preconceitos, submetida a temores, regulada por interdições, nem todas elas de ordem religiosa. O discurso alimentar varia de acordo com os valores e atitudes sociais: comer menos ou comer mais, mostrar corpulência como sinónimo de abastança ou de riscos para a saúde; adoptar um regime alimentar em sinal de contestação ou de reprovação ou preferir regressar às origens da simplicidade alimentar, procurando a autenticidade das coisas através da macrobiótica ou da cozinha vegetariana mais ou menos radical; perfilhar um estilo de vida em que a alimentação é uma janela aberta para o global e para a inovação, através dos suplementos alimentares, dos alimentos sugeridos como medicamentos, misturar o étnico com a miscigenação de cinco continentes… Tu dizes-me o que comes e eu dir-te-ei quem és – e com isto expressamos o que há de mais denso na simbólica alimentar, na disponibilidade do omnívoro, mas também na variedade que faz o equilibro de tudo quanto pomos na mesa e que legitima a gestão inteligente, prudente, cultural da nossa relação entre a alimentação e o que pensamos da nossa forma física e o nosso bem-estar.
Vieram recentemente a lume as conclusões de um estudo intitulado “Alimentação e estilos de vida da população portuguesa”, realizado pela Sociedade Portuguesa de Ciências da Nutrição e Alimentação. Da posse dos resultados, pretende-se contribuir para a criação de campanhas de alimentação que ajudem a reverter os principais problemas de saúde associados à alimentação e estilos de vida. Mudámos profundamente nas últimas quatro décadas: em termos médios, gastamos percentualmente menos por cada década que passa; ingerimos também em termos médios, mais calorias e daí o recrudescimento dos factores de obesidade, já que a energia ingerida não é acompanhada de igual dispêndio por haver cada vez mais hábitos de vida pouco activos. Daí se compreender o grande negócio que é pretender resultados seguros e rápidos no tratamento da obesidade recorrendo a fármacos, métodos e tratamentos da redução de preço. Como a alimentação está carregada de simbolismos, os tais temores, preconceitos e interdições, os especialistas precisam de vir a público contrariar toda esta mitologia e os negócios pouco escrupulosos a ela associada. É nesse contexto que é importante situar obras como “Os alimentos e mitos que nos engordam” escrito pela Prof. Isabel do Carmo (Publicações Dom Quixote, 2010). Vejamos abreviadamente o que nos diz esta médica endocrinologista acerca dos erros, verdades e preconceitos num mundo do excesso de peso.
Na verdade, dado este tangível e intangível da alimentação, vivemos cercados por uma elevada carga de conselhos e crenças que acabam por moldar os nossos hábitos alimentares.
Para esta especialista em obesidade e comportamento alimentar, quando há peso a mais só a redução calórica pode resolver o problema, como ela sugere: diminuir o consumo de gorduras, de sal e de doces; comer por dia cinco porções de fruta e/ou vegetais; comer leite e derivados; diversificar os alimentos; fazer várias refeições ao dia, não considerar alimentação só o que se come à mesa. O obeso deve preparar-se para a sua responsabilidade no tratamento, assumindo tanto as vitórias como os fracassos. Importa não esquecer que não há peso ideal, há uma faixa de pesos, há estruturas diferentes em cada indivíduo e a estabilidade do corpo é individual. As grandes mudanças de peso têm de ser averiguadas e acauteladas. Cuidado com essa ideia de que lá em casa a comida é toda saudável, parece que aumentámos de peso por magia. Pois vem-se a descobrir que tasquinhamos sumos, gorduras, salgados e mais umas coisas que metemos à boca enquanto se vê televisão.
Acabe com os equívocos do tipo, a açorda engorda. A açorda é feita de pão de trigo, de azeite e de ovo, temperada com alho e coentros. Deve ser incluída numa alimentação saudável. A questão toda é a conta, peso e medida, a mesma coisa se dirá de comer pão (de preferência comê-lo integral e com queijo fresco), o arroz, a fruta (não deve ser comida em excesso, mas o mesmo se poderá dizer do azeite que é uma gordura saudável mas que deve ser usada em pequena quantidade numa dieta de emagrecimento). Isabel do Carmo percorre esse vasto repositório de questões que atormentam aqueles que têm de emagrecer: devem-se misturar alimentos? A massa faz as pernas gordas? Todos os aditivos são suspeitos? O leite magro tem menos cálcio? O mel engorda menos do que o açúcar (o açúcar como o mel tem muitas calorias e não deve ser incluído num plano alimentar para emagrecimento)? Os alimentos próprios para diabéticos não contêm açúcar? Os edulcorantes fazem mal à saúde? Quanto mais calor, mais água devo beber? A par destas questões de importância indiscutível, a autora explica com simplicidade o que é a cirurgia bariátrica (indicada para situações de obesidade mórbida ou grave), alerta para a importância da alimentação dos idosos, das mentiras ou omissões das crianças e jovens no que respeita à comida e desmonta o mito de que transpirar faz perder gordura.
De um modo corajoso, Isabel do Carmo denuncia o negócio por vezes com características crapulosas dos suplementos alimentares que apregoam emagrecer. Estes suplementos, vendidos em inúmeras lojas, são diferentes dos suplementos nutricionais, regulados pela autoridade nacional do medicamento. Os suplementos alimentares não são medicamentos, não podem alegar que curam, tratam ou previnem doenças. Há questões sobre as acções das plantas que estão mal conhecidas e sabe-se que muitos destes preparados, quando ingeridos com outras substâncias ou até medicamentos, podem provocar reacções indesejadas. Casos há em que a imprecisão das doses e a falta de demonstração de eficácia e a própria toxicidade das plantas podem constituir um perigo para a saúde pública. Isabel do Carmo diz taxativamente que não se devem tomar suplementos alimentares destinados a emagrecer, muitos são estimulantes prejudiciais, outros são diuréticos ou laxantes.
“Os alimentos e mitos que nos engordam” é um contributo estimulante para superar as verdades, os erros e os preconceitos que pululam no domínio do excesso de peso. O obeso deve trabalhar a sua força de vontade e não acreditar em milagres do marketing e da publicidade. E procurar saber para que serve o exercício físico, qual o papel da tiróide e que nem tudo o que é “natural” é bom e faz emagrecer. Perder peso requer disciplina, capacidade de decisão e saber vencer essas crenças alimentares que podem levar-nos ao insucesso quando se anda à procura responsavelmente de uma alimentação saudável e a tudo mais que nos pode ajudar a resolver, de forma estruturada, esse momentoso problema que são os quilos a mais.
Mário Beja Santos
Março de 2012