Até que ponto uma doença crónica ameaça a identidade pessoal?

Qualquer doença crónica se caracteriza por ser permanente, causada por alteraçõespatológicas irreversíveis, produzir incapacidade e exigir longos períodos de supervisão,observação ou cuidados. A irreversibilidade e permanência de algum tipo de limitaçãoe os constrangimentos inerentes ao próprio regime terapêutico, conduzem amudanças significativas no autocuidado, colocando importantes desafios à identidadepessoal.Quando falamos de Identidade pessoal, falamos da compreensão que cada um faz desi, incluindo as suas habilidades, valores, posição social, hábitos, sentido de vida eimpacto nos outros. A identidade pessoal deve ser entendida como algo emconstrução, na interação com o outro. É através da identidade que a pessoa se definee se distingue dos outros. Está, portanto, ligada à autoperceção de integralidade,autonomia, dignidade e respeito. O sentimento da identidade pessoal está fortementedependente de sentimentos de autoconfiança, autorrespeito, autoestima eautoimagem.A investigação mais recente revela a pessoa com doença crónica está sujeita a umaexperiência de mudança que coloca em causa diferentes dimensões da identidadepessoal. Existe a necessidade de reconfigurações nos elementos identitários, comograu de atividade, capacidades físicas, grau de dependência, disposição emocional,autoestima, autoimagem, autoconceito e papel social. A pessoa vê-se presa num corpoque a impede de ser tal como ela se reconhece. Este acontecimento pode gerarsentimentos de perda, de estranheza, de insegurança, de luta permanente pelanormalidade e de isolamento.A adaptação à doença crónica passa pela integração de mudanças no comportamentoe estilos de vila e pela aprendizagem de novos hábitos. Este é um processo que obrigaa um permanente trabalho identitário, percorrendo várias fases, que são permeáveisentre si e podem registar diferentes avanços e retrocessos*:

Fase I – Identidade antiga. Nesta fase, a doença crónica não tem a importância suficiente para que seja iniciada uma tentativa de mudança de comportamento, pelo que a pessoa enceta diferentes tentativas para retomar as atividades que integram a identidade pessoal anterior.

Fase II – Ameaça à identidade. Esta fase inicia-se no momento em que é atribuído um diagnóstico médico. Apesar de conhecer a direção que pretende tomar, de identificar os prós e os contras em manter comportamentos ligados à identidade atual, há uma certa hesitação em enfrentar a mudança.

Fase III – Negociação identitária. Esta fase corresponde à desconstrução cognitiva, afetiva e psicomotora da identidade presente, para introduzir novos elementos identitários. Nesta etapa existe uma clara consciência da necessidade de mudança e uma determinação para iniciar esse processo num futuro próximo. A doença passa a ser integrada na definição de si, o que permite aos indivíduos construírem um conjunto de estratégias de coping adaptativas para lidar com a cronicidade.

Fase IV – (Des/re)construção da identidade. Nesta fase dão-se início a um conjunto de comportamentos observáveis que evidenciam uma mudança comportamental e uma reorganização do quotidiano. A pessoa vai construindo os seus novos hábitos, adaptando os que faziam parte da identidade antiga ou eliminando outros. A ausência de sentido de um novo hábito pode motivar uma recaída no comportamento antigo, o que significa um retrocesso para fases anteriores. É nesta fase que alguns doentes passam a integrar grupos de ajuda ou associações de doentes e que se verificam comportamentos de adesão ao regime terapêutico proposto.

Fase V – Identidade reconstruída. Na última fase, a pessoa mantém comportamentos procurando não perder o que foi conquistado na fase anterior. Mantém-se o desejo de mudança e o esforço de prevenir recaídas que levem ao comportamento indesejado. É uma fase que se caracteriza pelo aumento da autoestima, pela integridade pessoal, por um incremento no conhecimento e pela perceção de um crescimento pessoal e de um sentimento de reconstrução pessoal. Existe um sentimento de continuidade, de conexão com o Eu prévio à doença e de normalidade.

A pessoa com doença crónica experiencia continuidade e descontinuidade na sua identidade pessoal. Na convivência com a doença crónica, as experiências de descontinuidade/ameaça são imperativas para que se inicie um processo de preservação, aquisição ou adaptação de hábitos de vida, ou seja, para que ocorra a (re)construção da identidade pessoal e se mantenha o sentimento de Si integro.

* Rafael, H. (2017). Reconstrução da identidade pessoal na doença crónica: Uma revisão integrativa. Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental (18), 77-84.doi: 10.19131/rpesm.0195

Helga Rafael cut

Helga Rafael Henriques, PhD, MsC, RN
Enfermeira
Prof. Adjunta na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa

13 Abril, 2019

Artigo escrito a propósito da conferência Viver com Doença Crónica.

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