Cuidados paliativos
“Os progressos tecnológicos e científicos que caracterizam o domínio da medicina nas últimas décadas têm contribuído para o desenvolvimento de novas formas de prevenção e diagnóstico de doenças, além de terem proporcionado o desenvolvimento de tratamentos médicos cada vez mais eficazes. Paralelamente, tem-se assistido, de um modo geral a uma melhoria das condições de vida das populações nas sociedades ocidentais, nomeadamente em termos económicos, alimentares, higiénicos e de assistência médica. Igualmente associado ao desenvolvimento das ciências biomédicas, está o facto de muitos procedimentos terapêuticos se terem tornado mais agressivos. Esta realidade é corroborada e ao mesmo tempo causa para que, no decurso de uma doença grave e potencialmente fatal, se mantenha o investimento em doenças curativas. Neste contexto, a duração de doenças sem perspectiva de regressão tem-se ampliado e mesmo o período terminal de vida tem vindo a tornar-se, em certos de casos, mais demorado.
As pessoas demoram hoje mais tempo a morrer, sobretudo quando a morte resulta de um processo de doença grave”. Temos aqui o quadro justificativo para entender como as pessoas com doença grave, incurável e progressiva, carecem de cuidados paliativos. “Cuidados Paliativos, confrontar a morte” é o livro de Sandra Martins Pereira (Universidade Católica Editora, 2010) que nos remete para as respostas em termos de serviços de saúde ao sofrimento da pessoa com doença incurável ou em fase terminal de vida. Ao proceder à recensão deste conteúdo dá-se por concluído o périplo em torno de um conjunto de leituras abraçando a dignidade da pessoa humana perante a morte, as razões que levam a curar do testamento vital e a prática de cuidados paliativos com o intuito de assegurar a qualidade de vida disponível à pessoa durante o tempo que lhe resta viver.
O movimento moderno dos cuidados paliativos, recorda a autora, iniciou-se na década de 60 do século XX, quando passou a ser socialmente urgente desenvolver um tipo de cuidados especializado que desse resposta às múltiplas e complexas necessidades dos doentes em fim de vida. O crescente aumento da esperança de vida leva a que nos últimos anos se tenha vindo a assistir a um alargamento da utilização deste tipo de cuidados que agora podem ser extensivos a quem sofra de doença grave e debilitante, ainda que curável. Esta matéria encontra-se legalmente estatuída através da criação da Rede Nacional de Cuidados Continuados e Integrados, conforme prevê o Decreto-Lei nº 101/2006, de 6 de Junho.
No final de 2010, já existiam 19 equipas de cuidados paliativos no nosso país, devidamente certificadas. De acordo com a legislação, cuidados paliativos são os cuidados activos globais prestados por unidades e equipas específicas, em internamento ou em domicílio, a doentes em situação de sofrimento decorrente de doença severa e/ou incurável em fase avançada e rapidamente progressiva, com o principal objectivo de promover o seu bem-estar e qualidade de vida. Na acepção de cuidados paliativos, a família ganha um sentido bastante lato, podendo até definir-se como o conjunto de seres humanos considerados como unidade social ou todo colectivo composto de membros relacionados pelo sangue, afinidades emocionais ou relações legais, incluindo as pessoas significativas. Todos, em maior ou menor grau, acabam por ser envolvidos. Aliás. A equipa de cuidados paliativos deve estar atenta de modo a conseguir integrar e apoiar eficazmente a família, por vezes devastada pela intensidade das situações. Como observa a autora, o cuidado à família que sofre deverá estender-se ao longo de todo o processo de evolução da doença e prolongar-se para além do momento em que a morte ocorre.
Existem várias modalidades de prestação de cuidados paliativos, a saber: serviços de internamento com equipas de suporte e serviços de internamentos gerais. A nível domiciliário, o apoio pode ser feito por equipas de suporte ou por equipas específicas. Há uma tendência para valorizar as unidades hospitalares móveis que consistem em pequenas equipas compostas por diferentes profissionais de saúde, ligadas a unidades de cuidados paliativos e que proporcionam apoio durante o internamento. Os critérios para internamento nestas unidades são essencialmente os seguintes: dificuldade ou impossibilidade de controlo dos sintomas no domicílio ou em regime de ambulatório; desgaste familiar; esgotamento do cuidador informal principal; ausência de cuidador informal. O apoio no domicílio pode ser efectuado através da implementação de acções paliativas. Convém recordar que existem equipas de suporte que asseguram no domicílio a função de aconselhamento diferenciado na área dos cuidados paliativos.
Estas equipas de cuidados são necessariamente multiprofissionais, integram médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, auxiliares de acção médica, assistentes espirituais e voluntários. Levantam-se nesta fase terminal de vida problemas muito delicados que se prendem com os cuidados de saúde que a pessoal nalguns casos rejeita. São conflitos éticos, divergências que podem subsistir entre a vontade expressa pelo doentes e pelos familiares, sobretudo no que diz respeito a tratamentos considerados fúteis. Daí o reconhecer-se como muito importantes as directivas antecipadas de vontade ou testamento vital e que consistem na manifestação em que a pessoa, em plena posse das suas faculdades, exerce a sua autonomia assinando um documento especificamente criado para esse fim no qual declara sua vontade relativamente aos cuidados de saúde que deseja, ou não, receber no futuro. Importa ter igualmente em conta que as instituições e os profissionais vivem delicadas situações de decisão ética, como será o caso do médico prescrever analgésicos ou sedativos que podem antecipar um pouco a morte. É este um dos terrenos em que move a bioética: por exemplo, quando um reanimador desliga uma máquina e toma os cuidados necessários para que o paciente não sofra as aflições da agonia, neste caso está a respeitar o seu dever de não insistência terapêutica para além do razoável.
Enfim, estes dilemas éticos e em particular os que têm a ver com a suspensão de tratamentos fúteis e de sedação paliativa são o território mais sensível dos cuidados paliativos. Por definição, eles merecem ser bem estudados e debatidos. Porque mesmo no confronto com a morte a nossa dignidade humana deve ser preservada, a nossa vontade ou a nossa autodeterminação, no enquadramento da lei, deve ser respeitada.
Mário Beja Santos
Março de 2012