Corpulência e obesidade: prevenção não é discriminação

A obesidade tem vindo a ser encarada como um dos problemas da saúde pública de maior dimensão: fala-se dela como epidemia, flagelo, a carga explosiva que pode vir a dinamitar a saúde para todos… A obesidade é assunto que põe uns contra os outros, indevidamente.
As políticas de prevenção, como é compreensível, dão-lhe relevo, tal como as indústrias. O que se vai procurar destacar é se não é possível lidar com a prevenção reduzindo as peças do armamento da discriminação. É verdade que sempre houve discriminação. A literatura encarrega-se de demonstrar que os miúdos na escola falam, desde há muito, dos gorduchos com epítetos cruéis: baleia, saco de batatas, peida gadocha… E há os preconceitos, a inextrincável associação entre os quilos a mais e a preguiça, a estupidez, a negligência, a sujidade. Em resumo, o gorducho faz parte da lista dos estigmatizados, tem uma posição inferior, alguém que está debaixo de água nas relações com os outros: na escola, no trabalho, nos cuidados de saúde e na vida em sociedade, sofre as consequências quando toma um seguro, quando viaja, quando procura vestuário e calçado; é ridicularizado nas relações sociais. Talvez valha a pena começar por aqui, pela construção de um ideal estético, a norma a que nos devemos conformar, em determinada época.

As propostas estéticas atuais têm a ver com o adelgaçamento, o corpo musculado, as formas físicas são ditadas pelo que vemos na publicidade e nas instâncias onde se organizam os cânones da beleza. O obeso, mesmo indiretamente, é tratado pelos órgãos de comunicação social como alguém que vive num puro dramatismo, por ele montado. Fala-se de obesidade e a linguagem é castigadora: epidemia galopante, números alarmantes, um pesado fardo para o orçamento da saúde e para a segurança social (reformas antecipadas, por exemplo). Veladamente ou não, insinua-se que a responsabilidade está sempre do lado do indivíduo devido aos seus comportamentos pautados por excesso alimentar e alimentação desequilibrada. A publicidade também dá a sua mãozinha, para melhor vender regimes e métodos que se apregoam como revolucionários para a perda de peso difundem mensagens que sugerem que a perda dos quilos a mais é uma coisa muito fácil e que o sucesso reside obrigatoriamente no esforço pessoal. E o obeso sofre todas estas pressões das indústrias agroalimentares, cosmética e farmacêutica, de cabeça baixa.
Aparentemente, as instituições de saúde jogam na neutralidade e pautam-se pelo rigor. Define-se o excesso de peso e a obesidade como uma acumulação normal ou excessiva de gordura corporal que pode prejudicar a saúde.

Usasse um cálculo científico que é o Índice de Massa Corporal, ou seja a relação entre o peso e a altura ao quadrado. O que a prevenção oblitera é que existe uma multiplicidade de fatores que podem influenciar a nossa corpulência e que escapam ao controlo individual: o nosso ambiente, o isolamento, a predisposição genética e até os hábitos culturais. Não se atender a esta versatilidade de influências pode-se estar a contribuir para a rotulagem dos obesos como pessoas que sofrem de um desvio. Há investigadores que observam que a rotulagem social é dos impactos negativos das práticas de saúde pública, e no caso da obesidade é primordial que a prevenção atue sobre os fatores externos ao indivíduo, como é o caso das suas condições de vida e a morbilidade decorrente, por exemplo, da predisposição genética.
Na prevenção tem que aparecer como elemento incontornável a preocupação de que a estigmatização é suscetível de contribuir para a degradação da saúde da pessoa que se pretende apoiar, a discriminação tem efeitos de ricochete. Essa preocupação ajuda a agir sobre as representações sociais quanto à obesidade e sobre a compreensão da problemática em toda a sua complexidade. Tome-se como exemplo: o falar-se em epidemia da obesidade é uma escolha que acaba por apresentar o obeso como um doente potencialmente contagioso.

Dito por outras palavras, a prevenção deve procurar agir mediante uma visão mais global das causas do excesso de peso e da obesidade, de modo a que os recetores da mensagem ganhem uma maior compreensão da problemática e consigam resistir à estigmatização de quem tem excesso de peso ou é obeso. Na prevenção, temos que descobrir quais é que são os limites de modo a que a problemática do peso apareça sempre muitíssimo alargada e nada convidativa à discriminação. E assim a prevenção obterá resultados seguros junto de quem precisa.

 

Mário Beja Santos

Fevereiro de 2015