Um caso extraordinário de talento em literacia da saúde:
Cancro ponto e vírgula
Manuel Sobrinho Simões é um investigador que não precisa de apresentações. Como editor científico deste livro, coube apresentá-lo: “É um livro especial por várias razões. Porque reflete a experiência de um instituto, o Ipatimup – Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, que há 25 anos ajuda na descoberta nas causas dos cancros contribuindo assim para a promoção e diagnóstico precoce desta doença. Porque serve simultaneamente de guião e memória à exposição que a Fundação Calouste Gulbenkian nos desafiou a fazer nas suas instalações”.
É preciso saber muito para abordar com simplicidade questões tão complexas. Dizer com acessibilidade o que são os cancros, como atuam, como são as suas células, quais os principais tipos de tumores, qual a diferença entre tumor benigno e tumor maligno, quais as especificidades das células tumorais. E desfazendo equívocos: o cancro não é uma doença do século XX, o cancro raramente é hereditário, por exemplo. E explica-se como é que se pode usar a genética para melhorar o tratamento dos doentes.
É difícil conceber-se um roteiro mais primorosamente escrito. Para haver literacia em saúde é importante despertar a curiosidade e expor sem sobrançaria, como se escreve: “O cancro, tal como qualquer outra doença, é produto da interação genético-ambiental. É, por isso, muito importante saber o que se passa na caraterização dos diferentes órgãos do corpo humano. Temos, em primeiro lugar, de considerar o género e a idade da pessoa (futuro doente) já que há diferenças substanciais entre homem e mulher, assim como entre crianças/jovens e adultos/idosos. Depois tem de se distinguir os órgãos que possuem um revestimento (epiderme ou mucosa) que nos põe em contacto com o ‘mundo’ (pele, esófago, estômago, intestino, árvore respiratória, aparelho génito-urinário) dos órgãos parenquimatosos com ou sem regulação hormonal (mama, próstata e tiroide entre os hormono-dependentes, fígado, pâncreas e cérebro nos outros). A diferença entre os dois grupos diz respeito às funções normais das células que dão origem ao cancro: enquanto nos revestimentos e na medula óssea a regeneração celular é intensíssima, essa caraterística é muito variável nos órgãos parenquimatosos. Finalmente, temos de tomar em consideração os agentes ambientais potencialmente agressores nos diversos órgãos: a radiação ultravioleta para a pele, o fumo do tabaco para o revestimento da árvore respiratória e da bexiga, o microbioma (conjunto de bactérias que vivem em contacto com a pele e as mucosas) que têm uma enorme influência no trato gastrointestinal e noutros aparelhos e sistemas, as infeções víricas que envolvem as mucosas do colo do útero e do pénis, assim como o fígado, e os desequilíbrios hormonais que interferem com órgãos-alvo como a mama, a próstata e a tiroide”.
Selecionaram-se seis cancros que decorrem da sua exemplaridade em termos de prevenção e diagnóstico precoce: colo do útero, cólon e reto, estômago, mama, pele e tiroide. Dá-se primazia à prevenção mas também se considera crucial o diagnóstico numa fase tão inicial que o doente possa ser curado: “Só é possível conceber o controlo da mortalidade e da morbilidade por cancro através de medidas ativas de prevenção, também designada prevenção primária (não fumar, não engordar, fazer exercício físico, vacinar-se contra ao vírus do papiloma humano, etc.), e de diagnóstico precoce, a chamada prevenção secundária, sobretudo através do diagnóstico e tratamento cirúrgico de lesões premalignas, por exemplo da mama e da tiroide”.
O livro contempla o conhecimento de fatores de risco do vírus do papiloma humano, da radiação ultravioleta, do tabaco, da alimentação desequilibrada e da inatividade física e, por último, o risco familiar, às vezes tão desesperado, e os autores alertam: “5 a 10 por cento dos cancros correspondem a síndromes hereditárias e devem ser estudadas com muita atenção. Deves tentar conhecer a tua história familiar de cancro. Analisa os dois lados da tua família e verifica se existem: mais de dois familiares com um cancro do mesmo lado da família; vários familiares com o mesmo tipo de cancro, ou com cancros diferentes associados à mesma alteração genética; familiares diagnosticados com cancro numa idade jovem (menos de 50 anos); familiares com alteração genética já identificada, caso da mutação de genes. Se encontrares alguns destes sinais, fala com o teu médico e informa-te sobre as consultas de risco familiar. É importante que o teu risco (e o dos teus familiares) seja avaliado por um médico especialista na análise genética de risco, para que tenhas acesso a medidas que possam prevenir um cancro no futuro”.
Livro recomendável para profissionais de saúde, promotores e educadores de saúde e organização de doentes. É um manual graficamente modular que custa a módica quantia de 4 euros (pelo menos na Fundação Calouste Gulbenkian).
Mário Beja Santos
Março de 2015