Não é um romance mas tem o condão de agarrar o leitor desde a primeira página, arrastando-o numa aventura que, inexoravelmente, acabará num desfecho profundamente sentido. Aproveitando uma descrição sumária publicada no Guardian, é este o assunto que está reservado a quem pega no livro “Antes do Adeus”, por Susan Spencer-Wendel com Bret Witter (Pergaminho, 2013): “Quando soube que só teria entre três e cinco anos de vida, Susan Spencer-Wendel decidiu deixar de viver em piloto automático e passar a ter uma vida inspiradora. Perante uma situação em que muitos se teriam rendido ao desespero ou à autocomiseração, Susan tomou uma decisão imediata: viver ao máximo cada minuto que lhe restava. Fez uma lista dos sítios que queria visitar, de coisas que ainda queria fazer e de pessoas com quem queria estar.
Nos dezoito meses que se seguiram preencheu cada dia com família, amizade e aventura”. A morte ronda de perto toda esta narrativa com um nível emotivo excecional, mas o leitor é capturado pela permanente lição da vida que o texto oferece, do princípio ao fim. Tudo sem lamechice, prosa polposa, serena, incitadora de coragem e alegria.
Basta pegar no arranque do texto: “Sinto-me estranha quando penso na minha vida anterior, aquela em que funcionava em modo de piloto automático”. Descreve a sua vida de jornalista e de dona de casa nas suas ocupações, as suas expetativas. Até que uma noite de verão, em 2009, levantou a sua mão esquerda, sob a palma viam-se as linhas dos tendões e as junções dos ossos. Começa a deambulação pelos médicos. Diagnóstico: esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença progressiva, que avança músculo a músculo, cuja causa é desconhecida, não há tratamento nem se conhecem casos de cura. Susan não teve dificuldade em perceber que iria definhar pouco a pouco até ficar totalmente paralisada. Procura obter novas opiniões médicas, abandonou a ideia de suicídio e num parque de estacionamento de um Burger King tomou a decisão de usar esse tempo com sabedoria.
As idas à clínica, o saber olhar o céu com serenidade, fazer o chamamento à coragem, passar a ver o mundo de outra maneira. Tem um marido solícito e três filhos maravilhosos, um deles com síndrome de Asperger. Escreve páginas maravilhosas sobre as suas lembranças familiares. E vira-se do avesso, a aventura está em marcha, sem qualquer queixume ou devaneio: “Se o leitor estivesse a morrer, o que faria? O que veria? Com quem escolheria passar o último ano da sua vida? Para mim era muito claro que queria viajar. Viajar foi sempre uma vivência mágica na minha vida. Viajar sempre foi, para mim, a essência da vida”. Tudo a fascina, adora contemplar: “Olhei o céu em busca de equilíbrio, e de repente pensei em auroras. As auroras boreais são um dos fenómenos mais fabulosos da natureza, visíveis unicamente nas regiões polares do planeta. São verdadeiros espetáculos de luz ora verde e branca, ora vermelha, rosa, violeta ou azul. A aurora boreal é o arco-íris da noite”. E viajam para ver auroras boreais. Encontra-se com uma grande amiga, Nancy, muitas recordações vêm-lhe à memória. Os filhos às vezes perguntam-lhe se vai morrer e ela responde que não sabe o que tem de acontecer. Passeia amparada por Nancy, traça um plano para o seu ano, quer viajar à Hungria e regressar a Chipre.
Fala-nos da família, do seu passado. Fica aliviada quando soube que a ELA não é uma doença genética: “Agora sei que os meus filhos certamente herdarão muitas coisas da minha pessoa, mas não herdarão o meu destino”. Entretanto, já se despedira, com sofrimento contido, do jornal onde colaborara mais de vinte anos, o Palm Beach Post. Ao descrever-nos a sua mãe biológica, dá-nos um relato pungente, num fraseado sóbrio para descrever afetos definitivos. No jornal fazem-lhe uma festa de despedida, é o momento propício para mais recordações. São páginas inesquecíveis.
Seremos esclarecidos como Susan conheceu o marido, como constituíram família. E de repente Susan começa a preocupar-se com John e o futuro: “Eu sabia que as responsabilidades estavam a esmagar o meu marido. Era preciso cozinhar, limpar a casa, solicitar ajuda às crianças. De certa maneira, gerir as vidas dos nossos três filhos era um pouco como ter um despertador a tocar de quinze em quinze minutos. John vestia-me e dava-me banho, pagava as contas, cozinhava, dava-me comida sempre que estava demasiado cansada para sequer pegar num garfo, falando por mim quando a minha língua extenuada arrastava as palavras de uma forma tão penosa que mais ninguém senão eu me entendia”. Viaja com o marido a Budapeste, onde se sentiu jovem. Estão carinhosos um com o outro e satisfeitos com as decisões tomadas: “não enlouquecermos à procura de curas para a minha doença no Google, não me oferecer para ensaios clínicos para apenas receber um placebo, não alimentar falsas esperanças em torno da possível descoberta de um medicamento milagroso”.
Depois é um reencontro com a irmã, a maior das dádivas, a quem ela dedicará o livro. Depois, Susan começa à procura do pai biológico, outro testemunho emocionante, é enorme a revelação e o seu conteúdo quando descobre a família do seu pai.
Felizmente que as recensões são esquemáticas apreciações de alguém que está a pontuar uma obra publicada. Isto para dizer que chegou a hora de me conter sobre o evoluir deste relato ímpar numa vida tragicamente curta, não se deve defraudar o leitor nem condensar um documento, que neste caso é extraordinário. A relação daquele casal tem uma elevação de cortar o fogo, o leitor perceberá como Chipre se torna um local mágico e um quase epicentro da vida que Susan ainda tem para viver. Os problemas de saúde agravam-se, as despedidas são marcantes, toda aquela família vive numa rede afetiva irrepetível. E tudo termina com alento para o futuro: “Queridos filhos, deixo-vos as memórias de tudo o que desfrutámos e descobrimos juntos. Chegou o momento de deixar este livro em que trabalhei quase todos os dias deste ano mágico, digitando uma letra de cada vez com o último dedo útil”.
Fica tudo dito sobre esse ano de alegria, pois, por decisão da autora, “cada dia é melhor se for vivido com alegria”.
Mário Beja Santos
Novembro de 2013