Baseando-se na experiência vivida pelo cancro de sua mãe, a jornalista Maria Elisa Domingues resolveu relatar o que viu e o que sentiu, nas diferentes fases: do choque da notícia à decisão do tratamento, como se processou a comunicação com os médicos, quais as dificuldades que experienciou enquanto cuidadora. E resolveu ir mais longe, conversou com médicos e com outros profissionais de saúde, deu voz à história de 16 doentes ecológicos e suas famílias. Porque cada doente é um caso, não há relatos padronizados, todos eles nos obrigam a refletir, a perceber aonde está a esperança do doente, como a partilha do cuidador pode ser enorme, pode mudar tudo à volta do doente canceroso. “Amar e Cuidar, A minha viagem pelo mundo do cancro”, por Maria Elisa Domingues, A Esfera dos Livros, 2012, impele-nos a entrar no submundo do cancro e a acompanhar a autora nesse trajeto onde não falta a abnegação e a solicitude. Temos aqui uma reportagem laboriosa, consistente e profundamente didática. Como adiante se refere.
Chegou a hora da operação, e quantas incertezas. Como escreve a autora: “Estará o cancro limitado a uma só zona, como os exames parecem indicar? Conseguirá o cirurgião eliminar todas as células malignas? O que revelarão os exames dos tecidos à volta do tumor? E aguentará a minha mãe, aos 85 anos, tão frágil como está, a anestesia?”. Trata-se de um cancro da mama, muito agressivo e já bastante extenso. E a mãe era uma doente exemplar, sempre atenta aos prazos das consultas, cumprindo os exames de rotina. Em 2 meses a mãe parece ter envelhecido 20 anos. Nas primeiras semanas da quimioterapia o cabelo ficou totalmente branco e começou a cair em grandes quantidades, ela que possuía um porte e uma agilidade que a fazia mais nova aos olhos de todos passou a ter o tronco curvado de forma acentuada. A filha rememora o que passou em escassos meses: os vómitos a seguir à primeira sessão de quimio, as aftas e as feridas na boca, a imensa prostração. Enquanto aguarda a operação, a jornalista decide, se a mãe se salvar acompanhar passo a passo a evolução da luta contra o cancro, registando num livro essa trajetória: amar tomará a formar de cuidar, uma viagem de imenso sofrimento mas onde também se houve as vozes da mais lumiosa esperança.
O que a autora regista tem cunho de universalidade: quando chega a notícia, como se reage ao anúncio, e ouvem-se histórias, Steve Jobs confiou, num período crucial por dietas de sumos de frutas, ervas medicinais e acupunctura, quando decidiu aceitar os tratamentos já era tarde. Conta-se também a história de Sofia que fez a quimioterapia, que teve vários internamentos, incluindo um transplante, uma vida familiar à beira do caos mas que teve um final feliz, a família descobriu a coesão. Quando chega o cancro, todos são afetados lá em casa. “Muitos doentes afirmam que as suas relações com os seus entes queridos se tornaram mais fortes com a doença. Muitas pessoas olham retrospectivamente para uma doença grave como uma oportunidade para a vida (e viver a vida!) com os outros”. Sim, tudo se altera na vida familiar, quanto melhor se preparam os cuidadores mais conforto e dádiva se oferece ao doente. “O cuidador precisa de encontrar estratégias que o ajudem a lidar com os seus próprios medos, para poder estar emocionalmente o mais equilibrado possível para outro. Se tiver problemas de saúde, é indispensável que continue a tomar a sua medicação e não falte às consultas médicas”. A comunicação é fundamental, é importante saber dar notícia às crianças, os amigos do doente canceroso têm papel capital. Acresce que o cancro pode trazer mudanças profundas nas relações profissionais.
A relação com os médicos estão felizmente mais humanizadas. A autora analisa o saber ouvir o doente, a importância da comunicação e como optimizar a relação com médicos, enfermeiros e voluntários.
Há o medo dos tratamentos, daí a abordagem numa linguagem muito acessível da quimioterapia e da radioterapia e dos seus efeitos, refere-se a hormonoterapia e questiona-se o papel das medicinas alternativas. Convém recordar que “nos últimos 20 anos, o mundo da oncologia mudou profundamente graças à evolução da quimioterapia e da radioterapia, à descoberta de novos fármacos, à extraordinária transformação da imagiologia, mas também ao aperfeiçoamento das técnicas de anestesia e cirúrgicas”. Na recolha de um depoimento de um médico fica-se igualmente a saber que se há alguns anos atrás era impossível operar um doente com metástases, atualmente essas cirurgias são muitíssimo comuns. A autora aflora os problemas inerentes ao internamento, o medo da anestesia, a mastectomia e outras amputações (caso da colostomia).
No tocante aos meios de prevenir e combater o cancro é referida pela sua importância o regime alimentar saudável, os estilos de vida onde pesam o abandono do tabaco, o sedentarismo e os rastreios como o PSA e o esfregaço vaginal. Seguidamente, procede-se a uma viagem pelos cuidados paliativos e chama-se à atenção para a fragilidade da rede de cuidados continuados em Portugal. “Aquilo que aprendi do meu contacto, pessoal e profissional, com especialistas em cuidados paliativos, é que o que importa não é tanto o cuidado que prestamos ao doente mas a maneira como o fazemos. Para familiares e cuidadores primários, para amigos que ocasionalmente dão uma ajuda ou para profissionais que dedicam a sua vida a ajudar doentes terminais, a ideia é a mesma: o segredo está no como”. Porque não há dois doentes iguais, um doente terminal tem que ser entendido, querido e respeitado. “Prestar cuidados paliativos significa que estamos a prestar uma atenção global ao doente: física, psicológica e espiritual. São três aspectos que estão interligados, um puxa pelo outro”. E como se tratasse de uma sumula de cuidados paliativos, acrescenta: o princípio básicos destes cuidados é que o tratamento nunca deve ser pior do que a doença, o doente nunca pode perder a sua dignidade, não se deve prolongar a vida do doente custe o que custar, o que importa é tornar os dias, meses ou anos que restam ao doente o mais serenos e tranquilos. Como corolário destes cuidados paliativos temos a preparação para a morte, domínio que nos deve merecer grande compaixão.
Os dois últimos assuntos abordados nesta obra prendem-se com a vida depois do cancro, é cada vez maior o número dos que sobrevivem, põem-se aqui diferentes questões como sejam a vida sexual depois do cancro, o medo da reincidência e o caso do cancro da próstata; obviamente que a oncologia está em franco desenvolvimento, a ciência levanta novas questões como é o caso do rastreio do cancro da próstata, do cólon e reto, do cancro da mama. No termo do seu trabalho, a autora dá-nos um oportuno glossário de termos usados em oncologia e repertoria associações, contactos e blogues.
Temos aqui um livro para refletir a agir e uma orientação muito positiva de que há sempre lugar para a esperança, seja qual for o tipo de cancro a vencer.
Mário Beja Santos
Abril de 2013