A atenção e o cuidado com os outros não é assunto de género
Fala-se, com cada vez mais intensidade, na importância fulcral dos cuidadores informais que zelam por doentes crónicos e muitos portadores de deficiência. Com o envelhecimento, fenómeno social irreversível, desenvolve-se uma ética do cuidado que abrange várias dimensões: tomar a cargo crianças desprotegidas; praticar a compaixão em doentes já na fase dos cuidados paliativos; visitar pessoas que vivem sós, cuidar do seu domicílio, da sua higiene, fazer-lhe as compras e comida; praticar o voluntariado em saúde em lares e hospitais. Isto para sublinhar que a vulnerabilidade e a dependência se posicionaram no centro da ética do cuidado – estão ao serviço daqueles que perderam autonomia.
Os diferentes estudos sobre cuidadores informais revelam que este tipo de cuidados é primordialmente praticado por mulheres, a implicação doméstica dos homens é comprovadamente reduzida. Uma boa maneira de estudar as diferenças entre a vida quotidiana das mulheres e dos homens consiste em comparar o modo como empregam o tempo. Ora, o espectro dos cuidados não escolhe género, basta pensar na percentagem altíssima de médicos, farmacêuticos, enfermeiros, paramédicos e outros trabalhadores em centros de saúde, unidades de saúde familiares, etc. Se a biologia não discrimina os trabalhadores de saúde, qual a razão pela qual o número de cuidadores é esmagadoramente constituído por mulheres? É facto que havia papéis específicos para homens e mulheres desde a noite dos tempos, o género feminino aparecia associado às tarefas domésticas, à educação dos filhos, ao acompanhamento dos idosos, a amparar doentes da família e da vizinhança. Tudo se alterou com os sucessivos saltos tecnológicos, marcadamente a partir do pós-guerra. Mas as tais tarefas domésticas, em toda a sua amplitude, têm sido sentidas como trabalho invisível e desvalorizado.
No plano dos princípios, é crucial que todos trabalhemos para uma melhor repartição da ética do cuidado. O nosso sistema socioeconómico e cultural participa na perpetuação das desigualdades e aparece não estar interessado em criar limites para o individualismo. A resposta devia partir de várias linhas de participação, de modo que a vulnerabilidade perdesse o cariz dominante do desempenho feminino no cuidado com os outros. O sistema educativo, a política de saúde e de segurança social, o papel da comunicação, deviam projectar um apelo à participação de ambos os sexos no cuidado com os outros: nas práticas de solidariedade nas autarquias; nos incentivos a cuidadores masculinos para portadores com deficiência e seniores em diferentes etapas de vulnerabilidade, na questão dos valores. Recordo que hoje as campanhas de violência doméstica não se cingem à violência das mulheres, projectam mesmo a violência a que são submetidos muitos idosos e homens com diferentes tipos de vulnerabilidade. Falando só da saúde, lembro o que todos sabem: a saúde começa na gestão da própria saúde e daí a literacia (que não escolhe sexos) e as sociedades em que vivemos são instadas a promover o consumo de estilos de vida mais saudáveis (o que igualmente não escolhe sexos).
É a conjugação desta rede de mensagens, se estivermos determinados por práticas diferentes de cidadania, que alterará todo o modelo de cuidados, actualmente discriminatório e prejudicial ao diálogo entre gerações.
Mário Beja Santos
Setembro de 2017